
Abertura do Campeonato Brasileiro de Va’a tem fala impactante de Nanda Baniwa e Kimokeo Kapahulehua
Abertura do Campeonato Brasileiro de Va'a Velocidade, em Brasília, tem fala impactante de Nanda Baniwa e ... leia mais
Quando falamos sobre a tradição da navegação polinésia, é inevitável sentir admiração. Esses povos dominaram o maior oceano do planeta em embarcações movidas à força humana e ao vento, guiando-se pelas estrelas, correntezas, voo de aves e leitura das nuvens. São, sem dúvida, os maiores navegadores da história. Mas junto com esse legado impressionante, surgem também mitos modernos — entre eles, a ideia de que não usar colete salva-vidas seria uma forma de “honrar” essa tradição.
A explicação para o fato de os antigos polinésios não usarem colete é simples: eles não existiam. Os materiais, o conhecimento e a tecnologia necessários para criar dispositivos flutuantes pessoais como os que temos hoje ainda não tinham sido inventados.
Esses navegadores confiavam em sua habilidade na água — todos sabiam nadar, mergulhar, e muitos passavam dias em alto-mar. Mas isso era fruto da necessidade e da realidade da época, não de uma escolha consciente contra a segurança. O risco era parte da jornada, e as perdas no mar eram encaradas como parte do preço da vida oceânica.
É verdade que nas culturas tradicionais polinésia havia um certo código de bravura. Mostrar medo, fraqueza ou hesitação diante do mar poderia ser mal visto em alguns contextos — como entre guerreiros ou líderes de expedições. Mas isso nunca teve qualquer relação com o uso de equipamentos modernos de segurança, até porque esses equipamentos sequer existiam.
Portanto, tentar justificar hoje a recusa ao colete salva-vidas com base na “tradição” é um erro histórico e perigoso.
Infelizmente, o que vemos hoje em parte da comunidade do Va’a é a construção de uma narrativa equivocada: a de que usar colete é “coisa de iniciante”, de quem “tem medo” ou “não confia na própria habilidade”. Isso não é tradição polinésia. Isso é ego mal colocado.
Não há honra em ignorar um recurso que salva vidas. Pelo contrário, há irresponsabilidade. O mar não respeita currículo, títulos ou tempo de experiência. Ondas grandes, correntes imprevisíveis, pancadas na cabeça e mal súbito não escolhem quem vai atingir. E, nesses momentos, o colete salva-vidas pode ser a diferença entre voltar para casa ou virar saudade.
É importante observar que até mesmo em eventos tradicionais no Havaí, berço moderno do Va’a, algumas competições já tornaram o uso do colete salva-vidas obrigatório — especialmente em travessias de mar aberto, como em canais entre ilhas. Essa mudança não vem por acaso.
Os próprios organizadores dessas provas, profundamente ligados à cultura polinésia, entendem que valorizar a tradição não significa desprezar a vida. Pelo contrário, reconhecer os riscos do oceano e usar os recursos disponíveis para proteger os atletas é uma forma mais autêntica e responsável de honrar a herança ancestral.
A cultura não é algo parado no tempo — ela evolui. E se os nossos ancestrais tivessem acesso ao que temos hoje, é difícil acreditar que recusariam algo tão simples e eficiente quanto um colete para proteger os seus. Afinal, nenhum guerreiro navega para morrer — eles navegavam para viver, descobrir, e voltar para contar.
A Hōkūleʻa, tradicional canoa de navegação polinésia com mais de 18 metros, é frequentemente usada como exemplo de respeito à cultura ancestral. Ainda assim, sua tripulação adota práticas modernas de segurança — entre elas, o uso de coletes salva-vidas, visível em alguns vídeos e registros da expedição. Mesmo sendo uma embarcação grande e estável, os navegadores não abrem mão desse item básico, mostrando que preservar a tradição não significa ignorar os cuidados com a vida no mar
Um dos argumentos mais recorrentes entre os que se recusam a usar coletes salva-vidas no Va’a é comparar a canoa com outras modalidades aquáticas como o surfe ou a natação. Mas essa comparação, além de rasa, é irresponsável e infantil.
O surfe, em sua grande maioria, é praticado a cerca de 100 metros da areia, com o surfista amarrado à prancha (literalmente uma boia, ou seja, um equipamento flutuante que não afunda) e sob constante vigilância de salva-vidas. Além disso, quando o mar sobe já se tornou comum o uso de coletes entre surfistas (em competições de ondas grandes ele é um item obrigatório).
Já na natação, competições em mar aberto exigem obrigatoriamente a presença de barcos de apoio com coletes a bordo — e muitas vezes com caiaques acompanhando os atletas de perto.
O Va’a, por outro lado, frequentemente envolve travessias de quilômetros em mar aberto, com canoas longas e instáveis, mudanças bruscas de clima, correntezas e risco real de huli (canoa virar) ou até naufragar. Não há comparação justa. E tentar usar essas outras modalidades como desculpa para rejeitar um equipamento de segurança só revela ignorância sobre o risco real envolvido.
Se quisermos realmente honrar os polinésios e sua tradição, devemos seguir seu exemplo de respeito profundo pela natureza e pela comunidade. E isso inclui cuidar da vida de quem está ao nosso lado na canoa.A tecnologia evoluiu. Hoje temos ferramentas que eles não tinham. Usá-las não diminui a tradição — eleva. Mostra que aprendemos com o passado, mas não estamos presos a ele.