Bate-papo com Murilo Pinheiro
Neste bate-papo com João Castro, o remador da lendária equipe Samu, Murilo Pinheiro, fala sobre a relação ... leia mais
Aloha amigos leitores!
Depois das olimpíadas que rolaram em Tóquio, vem agora as paraolimpíadas e as paraolimpíadas me trazem na mente um dos trabalhos mais gratificantes que já tive a oportunidade de realizar dentro da canoagem polinésia: o projeto Va’a nos seus sentidos.
Tudo começou logo que comecei a remar, em 2005 com o mestre Marcelo Depardo e ele, para falar sobre o que era a canoa e como remar junto, sempre soltava: “Galera, para remar não é preciso ver, mas sim sentir a canoa”, e mandava todos nós fecharmos os olhos e remarmos de olhos fechados. Um exercício que, imagino eu, muitos já fizeram em suas bases.
E aquilo me deixava fascinado de como dava certo, apenas sentir.
Mas, sentir o que? Bem, sentir várias coisas que se aguçam quando fechamos os olhos: Os cheiros, os sons, o tato com o remo, o tato com o banco da canoa, a temperatura da água e, principalmente, o balanço do mar e da canoa.
Continua…
Para falar um pouco do meu envolvimento e porque veio a inspiração para a partir desse gatilho olhar para “fora da caixa” e pensar em incluir deficientes visuais, vamos contar um pouquinho da minha história enquanto ativista das causas sociais.
Desde muito novo minha mãe nos incentivava a desapegar dos nossos brinquedos e roupas para no natal irmos a um orfanato que ficava na via Dutra e fazermos nossa boa ação para com aquelas crianças que não tinham nada.
Tenho certeza que essa sementinha plantada fez com que eu e meus irmãos olhássemos mais para o mundo ao nosso redor de uma forma com mais compaixão.
Na adolescência eu e meus amigos passamos a fazer campanhas nos nossos colégios e íamos nos orfanatos e comunidades de Niterói fazer a festa de natal para as crianças.
Já mais velho, com acesso a carro, com mais mobilidade e já trabalhando, os trabalhos voluntários se tornaram mais frequentes e a resposta às emergências da sociedade também.
Em muitos casos, quando ocorria uma tragédia, como a do morro do bumba, em Niterói, como a enchente da costa verde, a tragédia de Teresópolis e Petrópolis, em todas elas eu estava presente arrecadando fundos, alimentos, água, roupas e indo para a linha de frente de combate, como voluntário, sabendo que poderia fazer a diferença. As empresas que eu trabalhava me liberavam e muitas vezes faziam campanhas de arrecadação de verbas, eu ligava para os amigos que estavam na linha de frente e comprava tudo aquilo que o Estado não provia.
E assim fui construindo essa vontade e de certa forma necessidade de ajudar o outro pelo coração, pela felicidade de me sentir útil espiritualmente aos que precisassem de mim.
Quando abri meu clube, o Icarahy Canoa Clube, na praia de Icaraí, em Niterói, abri com essa proposta intrínseca: usar a canoa como uma ferramenta de transformação e inclusão.
Dentre todos os amigos e alunos que passaram dentro do clube, surge uma alma iluminada, meu amigo Marcos Ramalho.
Durante as resenhas a gente vai se conhecendo melhor, se conectando e de um papo desses falei com ele da minha vontade de colocar deficientes visuais para remar. Marquinho disse que trabalhava na secretaria de acessibilidade de Niterói e que iria levar meu projeto para frente!
Conexão criada!
A primeira pergunta que ouço é: Mas por que deficientes visuais?
Porque ouvia do mestre Marcelo Depardo, em 2005, que remar é mais que ver, é sentir. E quem mais sente os elementos do que os deficientes visuais?
Além disso, são pessoas que são ignoradas pela sociedade, vivem “escondidas” e colocadas de lado pela família pois tornam-se em sua grande maioria dependentes dos outros. Quantos cegos vemos nas ruas? Imagina ter que pegar um simples ônibus? Não conheço nenhum local em que um ônibus ao chegar no ponto seja comunicado por voz seu número ao menos! E aí como um deficiente visual se locomove a não ser pedindo ajuda para o outro? Dirigir é impossível para essa deficiência, então o simples fato de ter que se deslocar já é uma barreira…
A canoa polinésia poderia dar liberdade a essas pessoas, eu pensei, então, vamos tentar uma experiência! Vamos colocar deficientes visuais com remadores que enxergam e uma troca de experiências: Inicialmente os remadores narram o que estão vendo, depois são vendados, remam e os deficientes visuais narram o que estão vivendo!
Levamos a experiência para secretaria de acessibilidade que topou na hora e entrou em contato com a linda instituição AFAC (Associação Fluminense de Amparo aos Cegos).
Conexão criada e eles então fizeram uma triagem de acordo com alguns pré-requisitos e no dia 01/08/2018 fizemos nossa primeira saída!
Foi incrível esse dia e tenho certeza que está no coração de todo mundo que foi lá. Não é treino, talvez nem um esporte no sentido de performance.
É muito mais do que isso. É usar a canoa polinésia para dar vida aquelas pessoas, é fazer com que eles não se sentissem mais dependentes de ninguém, ali eles eram “apenas mais um remador” que precisavam iguais a todos remar, sincronizar, curtir e mais nada!
A canoa tem esse poder libertador. É incrível como ela cuida das pessoas que estão nelas e o amor que os novos alunos passaram a ter por ela foi imediato.
E assim se iniciava o projeto Va’a Nos Seus Sentidos. O objetivo era treinar aquelas pessoas para que eles se tornassem alunos regulares das turmas e se sentirem realmente incluídos, afinal, essa era a proposta. De outra forma, deixar eles no mundo deles seria fazer mais do mesmo e essa definitivamente não era a intenção.
Muitos alunos passaram pelo projeto e muitas passagens foram marcantes. Muitos desses alunos infelizmente passaram dessa vida para um plano superior, contudo uma declaração de uma filha de umas de nossas alunas marcou muito o que aquele projeto significava na vida desses alunos.
Um belo dia estava na praia e chega uma menina que nunca tinha visto e me chama:
– Professor Douglas, sou a filha da sua aluna (prefiro deixar nos nomes ocultos por respeito a todos) e venho comunicar que ela não vem mais.
– O que houve com ela?
– Ela se foi…
– Como assim e como você está?
– Professor, vim aqui para te falar pessoalmente porque vocês tiveram um papel muito importante na vida da minha mãe. Durante muitos anos, minha mãe vivia triste, isolada, apenas ouvindo a TV e vivendo sem vontade de viver.
– Depois que ela veio para cá, para esse projeto, ela passou a sorrir de novo. Sabe a quanto tempo minha mãe não sorria igual ela passou a sorrir no dia anterior e depois de chegar em casa da remada? Havia muito tempo!
– Professor, não vim tomar seu tempo, mas sim agradecer à canoa polinésia a você e aos voluntários do projeto. Vocês deram luz para a escuridão da minha mãe e isso vai muito além da escuridão do olho fechado, mas sim da alma. Minha mãe foi embora sorrindo e sonhando com o próximo dia de aula da canoa. Ela foi feliz e isso não tem nada no mundo que poderia pagar. Que Deus abençoe esse projeto.
Ali choramos, nos abraçamos e ela foi embora. Nunca mais a vi, mas aquelas palavras se perpetuaram na minha alma. E vi que valia a pena, que estava valendo a pena.
Durante dois anos tocamos o projeto. Criamos muitas metodologias, desde o primeiro contato com a canoa até a metodologia de fazer a sincronia sem precisar usar a voz, usando as batidas no casco da canoa, aumentando ou diminuindo a intensidade, o tempo de batida e etc.
“Quis fazer com que a canoa polinésia se comunicasse com eles, não eu. Eu estava ali para levar eles para onde a canoa os guiasse.“
Foi uma experiência linda, mas que com o tempo, infelizmente paramos.
Era difícil arrumar voluntários às sextas feiras às 08h00 da manhã. Todos precisam trabalhar. E sozinho, infelizmente, o “piano ficou pesado demais”. Pedi recursos para ao menos ter pessoas que me ajudassem a carregar a canoa para cima e para baixo e não fui atendido pelo poder público, mesmo depois de tanta exposição que tivemos levando o nome da cidade de Niterói com esse projeto pioneiro no mundo.
Sim, pioneiro no mundo.
E assim o projeto está em Stand by.
Recentemente, um dos nossos alunos que iniciaram no projeto e um dos grandes alicerces de luta pelos direitos dos deficientes visuais também partiu, meu amigo Carlos Alvim.
Um sujeito único que com sua força e paixão pela vida nunca se entregou e remava bem demais.
E me motivou a escrever esse artigo para quem sabe alguma empresa se interessar em abraçar essa causa realmente nobre junto comigo!
Hoje, depois de muito tempo e lutando com a falta de recursos, legalizamos nossa ONG, o Instituto Va’a Para o Mar. Continuamos tocando outros projetos sociais de forma voluntária, como o Kamuhana JurujuVa’a. Pelo amor de ver meninos e meninas tendo oportunidades.
Mas isso é para um outro artigo, quem sabe uma coluna falando de todos os projetos sociais existentes no VAA e assim nos unirmos e pensarmos em algo junto!
Grande aloha!
Douglas Moura