Expedição Tordesilhas: um reencontro com o Litoral Sul de SP

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Expedição Tordesilhas
Ao longo de quatro dias abordo de uma OC6, os remadores percorreram rota histórica de 200 kms utilizada nos primeiros anos do Brasil colonial. Foto: Arquivo pessoal

(…), que é de Norte a Sul, a qual raia ou linha e sinal se tenha de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e setenta léguas das ilhas de Cabo Verde em direcção à parte do Poente, por graus ou por outra maneira, (…)

Tratado de Tordesilhas – 7 de junho de 1494

Mais uma vez tive o prazer de me reunir com Søren Knudsen, cuja equipe fez a Expedição Caminho das Águas no Litoral Norte Paulista entre Santos e São Sebastião em fevereiro de 2023. 

Desta vez, falamos sobre a Expedição Tordesilhas que aconteceu entre 4 e 8 de abril desse ano. Confira:

Por que a Expedição focou no Litoral Sul de São Paulo?

O Litoral Sul de São Paulo é onde o Brasil nasceu e de lá cresceu tomando as terras castelhanas além do Meridiano de Tordesilhas se tornando o gigante da América do Sul.     

O Tratado de Tordesilhas acordado entre o reino de Portugal e o de Castela dividia o Novo Mundo, através de um meridiano a 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão no Arquipélago de Cabo Verde, na África. Para o leste seria português e para o oeste de Castilha.

Queríamos ver o Brasil selvagem do Bacharel de Cananeia, dos primeiros centros econômicos, das igrejas fortificadas com suas relíquias esquecidas pelo tempo, dos centros históricos com seus pelourinhos e catedrais com santos milagreiros dos tempos de colônia, o desastre ambiental do Valo Grande de Iguape e alcançar o Marco de Tordesilhas na Ponta do Itacuruçá, ali fixado como a extrema do Império português.    Navegar pelo maior complexo estuarino lagunar Brasil, entre Iguape e Pontal do Sul no Paraná, passando pelo escavado Canal do Varadouro para vivenciar, no seu estado natural, a imensidão e beleza dessa terra onde foi dividido por Deus pela mão do Papa.

Expedição Tordesilhas
A região abriga um precioso legado arquitetônico que remonta aos primeiros anos da colonização portuguesa. Foto: Arquivo pessoal

As praias desertas da Ilha Comprida, as matas impenetráveis na ilha do Cardoso, golfinhos e botos nos acompanhando, guarás vermelhos sobrevoando o mangue vivo e majestoso.  Águas intermináveis com seus cercos de peixe e canoas de pesca artesanal.  Antigas fortalezas e casa-fortes coloniais para garantir o poder luso na sua parte do Mundo Novo. 

A culinária, farta e saborosa, com palmito, ostras, peixe fresco e um arroz e feijão caboclo após um dia longo de remada.  O melhor molho de camarão que qualquer um de nós já comeu, no único chalé com gerador na praia do Superagui.  Um ponto iluminado na escuridão, onde o mar revolto se acasala com as águas calmas do canal.

A simplicidade dos meninos pescando nos trapiches e brincando com miniaturas de canoas na margem das águas.  As noites de lua nova sob um domo estrelado nas comunidades caiçaras com suas famílias assentadas por lá a mais de 300 anos.  O fandango das inigualáveis Meninas do Sol de Marujá.   

Uma vez que o foco do Império mudou para as riquezas minerais do interior e porque essa região não apresentava abrigos naturais de grande porte para portos, a região caiu no esquecimento por séculos.  Assim sendo, essa parte do nosso litoral existe quase intocada como era na época da chegada dos portugueses e pela sua importância, a UNESCO classificou o lagamar como Reserva da Biosfera do Planeta.

Teve ainda um motivo pessoal para voltar para o Litoral Sul.  Em 1973 quando eu tinha 12 anos de idade, o meu pai montou uma viagem de canoa caiçara descendo o Ribeira de Iguape de Registro até Iguape.  Como expatriado, ele quis vivenciar uma pequena parte da odisseia dos sulistas americanos que se assentaram na colônia El Eldorado de McMullen a convite de Dom Pedro II em 1867.  Um eterno aventureiro ele não se acanhava de fazer nada se assim o achasse interessante.  

Expedição Tordesilhas
Grande parte da região região se mantém preservada como era na época da chegada dos portugueses e pela sua importância, a UNESCO classificou o lagamar como Reserva da Biosfera do Planeta. Foto: arquivo pessoal

Quatro famílias estrangeiras radicadas em Santos, a minha dinamarquesa, uma sueca, uma holandesa e uma norte-americana; os Knudsen, os Rohmann, os Van der Laan e os Kenny respectivamente embarcaram em canoas-de-um-pau-só e passaram três dias navegando o raso e sinuoso rio com o destino em Iguape.

Com cartas topográficas do IBGE e bussola em mãos, quatro canoas alugadas partiram de Registro com oito adultos e doze crianças entre as idades de 2 e 12 sob olhares curiosos e desconfiados dos ribeirinhos.   Sem pressa, sem coletes, muitos sacos plásticos, grandes “coolers” americanos inéditos por aqui na época, repelente, filtro solar branco e pastoso cobrindo o nariz de todos, a expedição progrediu ao bel-prazer dos pais, da alegria da criançada, e no tempo e velocidade do rio numa aventura que ficou na memória de todos.

Acampamos em barracas nas praias das curvas do Ribeira.  Além do que foi trazido nos coolers, o que era pescado durante o dia das canoas pela molecada era preparado nas fogueiras sob o céu estrelado do Cruzeiro do Sul.  Exploração noturna com lanternas pela criançada e muita caipirinha e cerveja para os adultos, as risadas ecoavam pelos barrancos até tarde.

Por escolher Iguape como ponto de partida da Tordesilhas, foi como conectar essa memória do passado ao presente com 50 anos de diferença.  De certa forma foi também uma homenagem a aqueles pais que proporcionam experiências magnificas para seus filhos que continuam rendendo risadas.      

Expedição Tordesilhas
Søren Knudsen em dois momentos, refazendo uma expedição que marcou sua vida após 50 anos. Foto: Arquivo pessoal

Qual foi a equipe dessa aventura?

Contamos com a mesma equipe de Santos que completou a expedição do ano passado:  Pedro Console de Moura Ribeiro (39), Carlos Augusto Oliveira Nunes (67), Adriano Brusasco Pini (39), Søren Knudsen (62), Caio Mariani (39) e celebramos o aniversário de 60 anos do nosso leme Klaus Monteiro de Souza na última noite da remada na Ilha do Mel. 

Para os aproximadamente 200 kms que remamos em 4 dias, voltamos a navegar na canoa Janaína.  Uma Bradley Lightning leve e rápida, é ideal para as águas abrigadas do Mar de Iguape que acompanha a Ilha Comprida, o Mar Pequeno de Cananéia, o Canal da Ilha do Cardoso, o Canal do Varadouro, o Lagamar do Superagui que nos levou até a Ilha do Mel.  Para minimizar o peso, cada remador somente levou uma sacola estanque de 20 litros de pertences pessoais e uma de 5 litros para uso durante o dia.  A medida que avançavamos, pernoitávamos nas pousadas ribeirinhas bem aconchegantes.      

Diferente da remada de Santos a São Sebastião, que foi em mar aberto, essa expedição seguiu em águas abrigadas com remadas mais longas e de certa maneira mais uniformes.  As correntezas geradas pela lua nova são fortes e foi importante coincidir os trechos programados com as tábuas das marés e previsão do tempo, pois aproveitamos a sua ida e a vinda nesses grandes trechos de canais estuarinos sempre procurando almoçar durante o estofo. 

Culturas polinésia e caiçara lado a lado. Foto: Arquivo pessoal

Nos primeiros três dias tivemos remadas longas, cansativas, mas tranquilas com céus limpos, temperaturas amenas, sem ventos adversos.  Sabíamos tinha uma frente fria prevista para o final de semana e como esperado domingo amanheceu com emoção ao atravessarmos de Superagui para a Ilha do Mel em mar grande.  Bagagem segura e coletes vestidos, traçamos uma rota aberta cortando a ondulação até a altura da Ilhas das Palmas onde encaixamos um downwind em direção à Baia de Paranaguá até a Fortaleza da Nossa Senhora dos Prazeres.  A adrenalina da travessia nos rendeu muitas risadas durante o dia e mais ainda regada de cerveja na comemoração do aniversário do Klaus aquela noite.                  

O nosso Litoral Sul é um diamante bruto.  Tudo conspirou a favor para que a nossa experiência fosse a melhor possivel.  Alcançamos os nossos objetivos, mas o que é mais importante, levamos memórias conosco das pessoas e lugares que visitamos que somente são possíveis quando se dispõe a fazer o que a maioria somente sonha. Uma canoa unida cria e realiza os sonhos da equipe.

Quais os planos para o futuro próximo?

A nossa meta é de remar os quase 600 kms do litoral paulista.  Para tal, nos faltam dois trechos muito diferentes cada um com suas histórias e encantos.

Ainda esse ano vamos explorar as baias, enseadas e ilhas do litoral entre São Sebastião e a Cabeça de Índio em Trindade.   Queremos conhecer as histórias dos mestres canoeiros de Ubatumirim e o legado da canoa de guerra da Confederação dos Tamoios, visitar os quilombos no sopé das serras e as aldeias Guaranis a beira dos rios para sentir a essência da cultura caiçara. 

Equipe reunida recebe a hospitalidade caiçara. Foto: Arquivo pessoal

Para completar a nossa meta iremos de Santos a Iguape desafiando o mar aberto seguindo as longas praias de enseadas até o a Estação Ecológica da Juréia-Itatins com seus rios Verde, do Una, do Prelado e do Guaraú que abrigam um dos trechos mais bem protegidos e preservados de Mata Atlântica do Brasil.   

Conhecer a beleza bruta de cada trecho e o que é mais importante, buscar os ecos distantes das vozes daqueles que deles os fizeram seus lares e dos que hoje fazem jus ao ideal do Brasil tão sonhado durante a época das Grandes Navegações.

Galeria de imagens Expedição Tordesilhas:

O seu colar é de concha

Seu vestido se arrasta na areia

Ela tem cheiro de mar

Ela sabe cantar, ponto de sereia

Ó Janaína, quando estou feliz eu choro

Ó Janaína, deixa eu dormir no seu colo

Ciranda pra Janaína de Kiko Dinucci
Interpretado pelas Meninas do Sol
Marujá, Ilha do Cardoso.

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