Expedição Caminho das Águas: uma viagem pelo espaço e pelo tempo

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Remadores de Santos refazem rota do período colonial do Brasil em busca de uma conexão profunda com nossa história. Foto: Arquivo pessoal

“… Praia do Itaguaré, na distância oferendas para Iemanjá, uma longboarder de maiô rosa impecável aproveitando uma esquerda perfeita que lhe brinda com o leve véu de terral.  Mar aveludado, vento e ondulação em popa, a Mata Atlântica emoldurada pela Serra do Mar e um Céu de Brigadeiro. A Janaina desliza em direção à Barra da Una…”

Diário de bordo da canoa Janaina. 4/2/2023

Søren Knudsen, remador da equipe Guapuruvu, campeã do circuito Aloha, campeã Paulista e terceira colocada no Pan-Americano de 2022 na categoria 60+, fala sobre a Expedição Caminho das Águas, realizada no Litoral Norte Paulista, entre Santos e São Sebastião, entre os dias 3 e 6 de fevereiro de 2023.

Por que fazer uma Expedição va’a no Litoral Norte de São Paulo?

O nosso litoral e em particular o Canal da Bertioga foi palco de todos os grandes movimentos e novidades da história do Brasil. Os alusivos canoeiros que chamamos de sambaquieiros viveram nesse ambiente aquático por milhares de anos deixando sua memória em zoólitos e restos funerários nos maiores sambaquis encontrados no Brasil. 

Quando os Tupis vieram do norte do continente avistaram a baixada do alto do Planalto.  Para eles parecia uma “terra quebrada” pela quantidade de ilhas, rios e montanhas que se via.  Desceram a serra com uma vantagem bélica mortal: o arco e flexa.  Com a “morte que vinha do céu” conquistaram as terras e as mulheres dos sambaquieiros que ironicamente chamariam de os “avós”.  Com seus deuses do trovão se autointitularam “os primeiros”.  Sua memória está gravada em todos os nomes de praias, enseadas e rios que conhecemos.  A herança da grande canoa de guerra sobrevive nas canoas de voga.  

Ilustração de Theodore de Bry do século XV, baseada em relatos de Hans Staden, reproduz batalha entre Tupinambás e Tupiniquins junto a portugueses na região de Bertioga. Foto: Reprodução

Os portugueses e seus inimigos franceses trouxeram o arcabuz, a catapora e os jesuítas.  Empurraram os Tupis e a resistente Confederação dos Tamoios de Cunhambebe de volta para a densa floresta do Norte de onde vieram os primeiros.  A terra estava aberta para o primeiro ciclo de açúcar no Brasil.  As ruinas de fortes, igrejas e engenhos embrenhadas nas matas e nos morros da baixada atestam para a riqueza gerada pelas sesmarias de Braz Cubas, os irmãos Góes, os Erasmos e os Adornos para saciar os paladares da Europa.  O mercenário Hans Staden, arcabuzeiro a serviço de Braz Cubas em Bertioga, foi cativo dos Tupis durante os conflitos que decidiram o destino do litoral e descreveu suas aventuras no tomo Duas Viagens ao Brasil publicado em 1577.

A demanda pela rapadura doce requer escala maior. Para aumentar a produção e encher os cofres dos donatários a mata substituída pela cana é queimada nas caldeiras dos engenhos aperfeiçoados nas Ilhas Açores dia e noite.  Para construir a infraestrutura necessária os antigos sambaquis de conchas são triturados e queimados para obter cal que é misturado com óleo de baleia oriundas das armações de baleias.  A mão-de-obra necessária é caçada no laço pelos Bandeirantes e quando não tem mais onde buscar na mata é trazida das colônias portuguesas na África pelos navios negreiros.

Expedição Caminho das Águas
Trajeto da expedição (em vermelho). Foto: Reprodução

A escravidão grita pela liberdade.  Os capitães do mato não dão trégua, mas os que se arriscam e sobrevivem encontram refúgio atrás das estacadas, caiçaras, construídas nas matas, enseadas e montanhas longe do alcance dos senhores dos engenhos.  A cultura caiçara; um amalgamo de costumes europeus, africanos e indígenas é perpetuada no nosso litoral.  Sua presença na comida, na língua, na música, na pesca e no conhecimento do mar e das matas estão presentes nos remanescentes de quilombos, aldeias e todos os vilarejos de pesca na costa.

A cana dá lugar ao café e à banana.  Os bananeiros tomam o espaço das antigas sesmarias e a Baixada, desde Peruíbe até São Sebastião, vira um grande latifúndio de banana com suas linhas férreas e chatas para transportar o ouro amarelo por terra e por mar.  Repúblicas das Bananas. 

Fortunas são feitas exportando bananas para a Argentina e maiores ainda exportando café vindo do interior para a Europa e os Estados Unidos.  Santos se torna um dos portos de exportação mais importantes do Brasil.  Os restos dos portinhos e de trechos de trilho cobertos pelas matas no mangue que ainda podem ser vistas nas margens do Canal da Bertioga atestam para esse ciclo de poderio econômico da Baixada Santista.

Ruínas sendo engolidas pela exuberante mata atlântica litorânea são o testemunho de nossa história e dos primeiros encontros entre europeus e indígenas. Foto: Arquivo pessoal

A rodovia Rio-Santos planejada para conectar e assim facilitar a defesa dos dois mais estratégicos portos do Brasil abre o acesso por terra para o que até então só foi viajado por mar nas grandes canoas de voga entre Ubatuba, São Sebastiao e Santos levando rapadura, cachaça e banana para os mercados.  Seu traçado é arrojado para coincidir com o Milagre Brasileiro e mostrar que o Brasil é o país do futuro.  Evita contato com as comunidades que vivem no litoral para facilitar o transporte e preservar a cultura local.   

Quando o dinheiro acaba antes da obra terminar, o novo traçado da rodovia de Ubatuba para Santos aproveita as trilhas rente ao mar que conectavam as praias e morros que ali existiam desde que os Tupis deixaram seu marco.  Abrindo a mata a rodovia encontra um modo de vida intocado por séculos e em poucas décadas contribui para seu quase extermínio.  Obras homéricas de concreto armado do traçado original são abandonados e em pouco tempo tomadas pela mata.  Com acesso ao porto a Petrobrás traz vida à moribunda São Sebastião. 

O tempo acelera e o Caiçara que nunca teve que trancar a porta, perde suas terras e seu mar para visionários especuladores e grileiros.  O Novo Litoral Norte amanhece com condomínios fechados, arame concertina, câmeras de segurança, surfe, maiôs de grife e vinho Rosê degustado debaixo de barracas montadas na areia onde antes os Caiçaras deixavam suas canoas-de-um-pau-só.

A nossa ideia da expedição por canoa não foi somente uma viagem pelo espaço, mas também pelo tempo.  De desacelerar e tomar o tempo necessário para escutar o distante eco de cada um desses ciclos e tocar o que foi esquecido para enaltecer todos que construíram a nossa história usando os mesmo rios e mares que nós usamos.  Viajando pelo mesmo Caminho das Águas usado desde que os sambaquieiros aqui criaram suas famílias.

Seis remadores e um desafio

Pedro Console de Moura Ribeiro (38), Carlos Augusto Oliveira Nunes (65), Adriano Brusasco Pini (38), Soren Knudsen (61), Caio Mariani (38) e Klaus Monteiro de Souza (58), ao lado da brava OC6 Janaína, prontos para o desafio em Santos (SP). Foto: Arquivo pessoal

A canoa Janaína é da nossa Base Noname Water Sports, baseada em Santos, SP.  É uma OC6 Bradley Lightning de dois anos.  Leve e rápida ela se comportou como a verdadeira Rainha do Mar de quem leva o nome.  

Contamos com uma super equipe de remadores experientes de idades desde os 38 até os 65 composta por Pedro Console de Moura Ribeiro (38), Carlos Augusto Oliveira Nunes (65), Adriano Brusasco Pini (38), Soren Knudsen (61), Caio Mariani (38) e Klaus Monteiro de Souza (58).  Todos têm um histórico de competir em eventos e de travessias longas.

O que queríamos, porém, era uma remada que além de aproveitarmos trechos longos por vários dias também teria a experiência de buscar destinos com pontos de interesse e a aventura de encontrar o que estávamos procurando.

Para representar a Expedição, escolhemos a iconografia Tupi do Caminho das Águas e da Piracema usada na pintura corporal cerimonial.  São símbolos fortes do nosso povo que nos conectam ao nosso mar.  São ecos do nosso passado que transmitem o poder da nossa terra.      

Uma travessia e muitas buscas

Remando pelo canal do estuário rumo ao litoral norte de SP: aos poucos, o ritmo frenético do maior porto da América do Sul vai ficando para trás e a conexão com nossa ancestralidade se inicia. Foto: Arquivo pessoal

Zarpamos de Santos com três missões distintas. A primeira perna da expedição, De Forte a Forte com 33 km almejou encontrar alguns dos muitos vestígios dos sambaquieiros, dos conflitos entre os portugueses e a Confederação dos Tamoios e dos ciclos da cana e da banana e do maior porto da América Latina e do Novo Litoral Norte em uma remada só pelo lagamar e Canal da Bertioga. 

Uma remada relativamente conhecida nos ofereceu uma nova visão do que ali existe.  Os fortes que defendem Santos desde os tempos coloniais, as primeiras igrejas do Brasil, o porto moderno, os sambaquis que construíram a cidade, ruinas dos engenhos de cana, os portinhos das chatas dos bananeiros.  Tudo isso além do show que a natureza nos brindou com Mata Atlântica e a Serra do Mar como pano de fundo.         

Acolhidos pela Paddle Club de Bertioga e o mestre Riesco, o brinde do dia foi o jantar de frutos do mar tipicamente caiçara.  Mesa farta, comida boa, cerveja gelada e muitas risadas.

Chegada em Bertioga. Foto: Arquivo pessoal

A segunda perna, A Costa Atlântica de 47 kms, teve como objetivo conhecer alguns dos recantos mais exótico desse trecho de litoral de enseadas.  O Canto do Indaiá, antigo sítio do Vicente de Carvalho agora mansão do Emilio de Moraes, a Reserva do Itaguaré e a beleza do mar aberto contra as praias até a antigo porto de canoa de voga da Barra do Una. 

Na matriz da Barra do Una não encontramos nenhum vestígio dos ossos de um monstro marinho mencionado pelo famoso explorador e cônsul inglês em Santos Captain Richard Burton que fez essa mesma viagem em 1866 para situar a história do Hans Staden. 

Na Una fomos recebidos na base do amigo Jú Carduz da Juquehy Surf House e pela tribo do remo de Juquehy do Caio Coutinho.  Não somente abriu a sua guardaria, mas também nos deu a logística necessária para que tudo corresse bem.  O pôr-do-sol do terraço do restaurante sobre o Rio Una e o pirão de sereia mais uma vez atestou que a culinária caiçara é única na região.

A terceira perna, Costões e Ilhas de 45 kms, nos levou até São Sebastião.  Nessa remada focamos visitar as ilhas somente acessíveis por mar e as praias paradisíacas nos costões sem acesso por terra.  Navegando a mesma distância que Burton navegou por canoa de voga, identificamos todos os pontos de interesse do seu relato inclusive o esquecido “Buraco da Velha” que tinha a fama de devorador de canoas na Ponta da Varanda depois da Ilha do Toque Toque.

Barra do Una. Foto: Arquivo pessoal

O mestre Itaquicé que nos acompanhava via GPS tempo real nos esperava na base da Guapuruvu no Porto Grande em São Sebastião.  Canoa desmontada e segura na carreta, já estava pronta para o traslado para Santos no dia seguinte.  O que tinha por três dias sido tempo parcialmente nublado, vento e ondulação em popa e tranquilidade, virou uma tempestade de verão com direito a ter que esperar abrigado até que a trovoada passasse. É como se os deuses estivessem no parabenizando pelo feito, mas também nos lembrando que mar perfeito é a uma benção.

O jantar de encerramento na Rua da Praia com vista para as luzes da Ilha Bela no preservado centro histórico de São Sebastião.  Embora cansados, todos estavam com um sorriso na cara que não tão cedo será apagado.  O senso de realização era pleno.

A Expedição foi um sucesso.  Alcançamos o nosso objetivo de conhecer os lugares que procurávamos, aproveitar as paisagens maravilhosas e o que é mais importante construir uma equipe coesa que em todo momento mostrou respeito ao mar, a canoa e a tripulação.  Construímos amizades.

A experiência mais marcante

Belezas preservadas ainda encontradas no litoral norte de São Paulo. Foto: Arquivo pessoal

Pessoalmente, a experiência mais marcante foi o senso hipnótico de remar em sintonia com a equipe por longas distâncias com o mar e o vento nos empurrando para o nosso destino.  Tivemos tempo excelente todos os dias que nos permitiu uma média de 15 km/h.  Diferente de eventos onde velocidade é o objetivo para ganhar, o que vivenciamos foi o sentido real de qualquer canoa, seja de voga, polinésia, canadense ou outra. 

O espírito da travessia é chegar inteiro ao destino, com segurança e confiança na equipe.  Para isso o planejamento prévio é essencial, suprimentos a bordo fundamentais, a navegação do leme crítico, o entendimento de todos da rota estabelecida pelo capitão preponderante e o respeito pelo mar primordial. 

A canoa vira um ser só.  Não são 6 pessoas remando.  É uma equipe remando o sétimo componente; a canoa que toma vida por si só.  Não à toa todas as culturas que seguem sobre as águas consideram suas embarcações como seres que têm alma própria e devem ser respeitadas como tal. 

Chegando em São Sebastião. Foto: Arquivo pessoal

A Expedição Caminho das Águas olhou para a nossa cultura do mar, enalteceu a nossa história e valorizou os nossos antepassados que desbravam os caminhos das águas nessa terra por mais de 12 mil anos. 

A Janaína nos carregou 120 kms e nos possibilitou realizar o que foi planejado.  Mas, o que é mais importante, nos mostrou o verdadeiro espírito da canoa: Respeito.  

Não por acaso, Respeito é o principal componente do Espírito Aloha – de afeto e paz que representa a canoa havaiana na Polinésia e a acompanha onde quer ela navega.

Planos para o futuro próximo

Descanso merecido. Foto: Arquivo pessoal

Estamos planejando mais remadas exploratórias aqui no litoral sul e norte de São Paulo.  Agora que pegamos o gosto e montamos uma equipe coesa temos a intenção de continuar entendendo a nossa herança marítima. 

Desligar o celular, desacelerar o tempo, nos inteirar do que está ao nosso redor e passar tempo com amigos.

Time stand still
I’m not looking back
But I want to look around me now
Time stands still
See more of the people
And the places that surround me now.

Rush, Time Stand Still, Hold your Fire

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