
Remada Rosa reúne remadoras nas águas da Amazônia
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Enquanto vejo que muitos atletas da canoa parecem ter como único propósito de vida colecionar mais e mais medalhas, um grupo de crianças em Angra dos Reis me mostrou a essência mais genuína da Va’a: a alegria de remar juntos. Assim nasceu o Va’Atípico, um projeto que resgata a simplicidade e a conexão humana por trás do esporte.
À primeira vista, parecia só mais um encontro esportivo. Canoa, sol, famílias na areia. Mas bastou a primeira remada pra todo mundo perceber que havia algo maior ali — um tipo de magia que o cronômetro não registra. O idealizador, Rafael Jesus, percebeu o que muitos esquecem: que o mar é o maior igualador que existe. Nele, ninguém é “normal” ou “diferente”. Todo mundo rema, cada um no seu ritmo de desenvolvimento, mas com o mesmo objetivo: seguir em frente.
Como todo sonho bonito, o início foi mais tempestade que calmaria. Faltava estrutura, apoio, e sobrava desconfiança. “Autismo e canoa? Isso dá certo?”, perguntavam alguns, com aquele ar de especialista de grupo de WhatsApp. Rafael ignorou o coro dos pessimistas e seguiu. O mar, afinal, sempre recompensa quem tem coragem de entrar na água. Cada criança que subia na canoa era uma vitória. Cada sorriso, um troféu invisível. E cada remada — uma aula de humanidade.
A canoa polinésia tem dessas coisas que nem Freud explica. É como se ela tirasse o peso da terra e colocasse tudo no ritmo das ondas. Dentro dela, todos dependem uns dos outros. Se um para, todos sentem. É um exercício de sintonia e confiança — e talvez por isso funcione tão bem com as crianças do Va’Atípico. No mar, elas não são “diagnósticos”. São remadores. Pequenos navegadores de um mundo que insiste em classificá-las. E, ironicamente, é no mar — esse caos líquido e imprevisível — que elas encontram equilíbrio.
As famílias também se transformam. Acostumadas a terapias, olhares atravessados e muros invisíveis, elas encontram ali um refúgio flutuante. Um lugar onde a palavra “inclusão” deixa de ser discurso bonito e vira gesto. E o mar, com sua calma e sua força, faz o que a terra muitas vezes não consegue: acolhe sem perguntar quem você é.
O Va’Atípico cresceu. Foi visto, aplaudido, filmado. Participou de eventos e emocionou quem já tinha esquecido por que começou a remar. E é aqui que mora a ironia: num esporte que prega união, mas vive rachado por vaidade, quem está lembrando o verdadeiro sentido de remar juntos são justamente as crianças autistas. Sem gritar por atenção, sem postar reels motivacional, sem querer holofote. Elas só querem remar — e, no processo, ensinam o resto de nós a sermos melhores.
Ainda faltam recursos, apoio e compreensão. Sustentar um projeto social é remar contra correnteza pesada. Mas a energia que vem dessas famílias é combustível que não se compra. Rafael conta que, quando ouve o grito de alegria de um aluno atravessando uma onda, entende que tudo valeu a pena. Porque o Va’Atípico não é sobre velocidade, é sobre alma. É remar com o coração, e lembrar que o “diferente” é, na verdade, extraordinário.
Se existe um lado da Va’a que se perde em disputas, rankings e vaidades, o Va’Atípico segue na contramão — provando, silenciosamente, que o verdadeiro espírito polinésio ainda vive. E que talvez o mar tenha escolhido essas crianças para lembrar a todos nós que a Va’a é sobre quem não deixa ninguém pra trás.