Italo Va’a homenageada pela prefeitura de Vitória (ES)
Remadores da equipe capixaba Italo Va’a Espaçolaser foram homenageados nesta quinta-feira (12) pela ... leia mais
Nos últimos cinco anos, a canoagem polinésia cresceu rápido e de forma exponencial no Brasil. Esse crescimento trouxe oportunidades, mas também desafios, dos quais destaco a importância da regulamentação de bases de canoa polinésia e a organização de um campeonato nacional bem estruturado.
Hoje qualquer pessoa pode abrir uma base de canoa polinésia e começar a dar aulas e fazer passeios. Não há nenhum tipo de fiscalização ou exigência de qualificação. Basicamente, uma canoa e um espaço para acomodá-la são os requisitos necessários para se criar um clube de va’a.
Diversas pessoas tentaram contabilizar quantos clubes de va’a existem no Brasil. Ninguém consegue porque a lista precisa ser atualizada praticamente toda semana. Estima-se que existam mais de 300 clubes no litoral e interior do país.
A pergunta que se faz é: quem são as pessoas que estão a frente desses clubes? Que tipo de formação elas têm? Que ensinamentos estão transmitindo a seus alunos? Na maioria dos casos, ninguém sabe.
Isso é particularmente preocupante quando se sabe que existem hoje no Brasil diversos clubes com mais de 200 alunos. Claro que tem muita gente séria e capacitada tocando suas bases, mas há, também, muita gente sem a devida qualificação atuando livremente.
E quais são os riscos disso? O mais óbvio, claro, envolve a segurança desses alunos, afinal, quem está colando essas pessoas na água diariamente precisa ter capacitação para isso. A solução para esse problema, felizmente, não é complexa, ainda que não seja tão simples. Mas, basicamente, depende de fiscalização e qualificações técnicas, como, por exemplo, formação em educação física e habilitação Arrais.
Mas outro fator, mais sutil, tem a ver com a transmissão da filosofia do va’a ou, melhor, a falta da transmissão dessa filosofia. Nesse sentido, vejo uma ligação direta com o que está acontecendo nesse momento em relação às competições no Brasil.
A va’a é muito mais do que um esporte ou um meio de transporte. A canoa polinésia é um veículo ancestral com uma imensa carga cultural, cuja filosofia implica na transmissão de valores e ensinamentos importantes. Esses valores incluem o respeito pela natureza, a importância da união e cooperação, a perseverança e, principalmente, a humildade.
Além disso, a va’a é um dos símbolos mais importantes da resistência anticolonialista das populações nativas da Polinésia (e se você deseja compreender mais sobre esse assunto, recomendo fortemente que acesse nossa série sobre Mau Piailug).
Quem não compreende a importância dessa história e desses valores pode até ser considerado um remador, mas nunca um remador de va’a.
Ontem recebi um print de um comentário de um dono de base que dizia que a “vibe do va’a só existia nos livros e filmes”. Segundo essa lógica, as competições, sim, representam a “verdadeira essência da va’a”. Considero esse argumento bastante problemático e acho que esse pensamento diz muito sobre a crise que a canoagem polinésia atravessa por aqui.
A Molokai Hoe é a prova de canoa havaiana mais tradicional do mundo. Sua primeira edição, realizada em 1952, no Havaí, é um marco na história da va’a.
Essa competição tem uma carga simbólica muito importante e surgiu em um momento em que os havaianos buscavam um resgate de sua cultura. Foi a partir dela que as competições de va’a ganharam força e se espalharam pelo mundo.
Com o passar dos anos, a Molokai Hoe se popularizou até se tornar uma competição de nível mundial, porém, assim como o resto dos eventos em todo mundo, foi suspensa com a chegada da covid-19.
No entanto, nos anos seguintes, mesmo com o controle da pandemia no Havaí, a competição permaneceu suspensa e só retornará esse ano.
Fui pesquisar o motivo de tamanha resistência para o retorno de um evento tão emblemático e, conversando com fontes que tenho no Havaí, descobri que havia um desconforto geral com o tamanho da Molokai Hoe, por estar se tornando “grande demais”.
Na visão dos havaianos, esse crescimento colocava a prova cada vez mais distante dos valores caros à canoagem havaiana, como a simplicidade, a cooperação e a cordialidade entre os remadores.
Uma das exigências para seu retorno foi a de um houvesse um limite e uma redução no número de inscritos como forma de manter a prova alinhada à filosofia da va’a.
De fato, quem já competiu no Havaí sabe que a estrutura dos eventos é mínima. Normalmente uma tenda pequena onde ficam acomodadas as medalhas e parte do staff. Em muitos casos sequer há um pódio.
Mesmo no Taiti, onde a va’a é um esporte nacional, a imensa maioria das provas, muitas com largadas com mais de 200 canoas, é realizada dentro de uma estrutura simples. E mesmo as maiores provas, como a Te Aito, Maratona Polynésie la 1ère e a Hawaiki Nui, estão bem longe de serem realizadas em megaestruturas.
Perguntei para um havaiano a razão para isso e a resposta foi: “We want to keep the country country”. Esse ditado, em essência, é sobre manter o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação das características distintas de uma região, incluindo, sua cultura.
Entendendo o histórico de dominação e apropriação cultural que essas populações vivenciaram nos últimos séculos, para mim, fica perfeitamente claro porque eles se preocupam muito mais com o conteúdo do que com a forma dos eventos ligados a um dos maiores símbolos de sua cultura: a canoa polinésia.
Chegamos então a realidade da va’a no Brasil e o paradoxo atual: como pode uma atividade que prega a união e respeito estar se tornando cada vez mais conhecida por suas brigas internas repercutidas nas redes sociais?
Bem, me parece bastante evidente que boa parte dos clubes brasileiros simplesmente ignora a filosofia da va’a acreditando que se trata “apenas de um esporte” e nada mais.
Só que, ao desprezar o que pregam os criadores desse “esporte”, esses clubes, muito mais do que demonstrar arrogância, são incapazes de entender que estão prejudicando o desenvolvimento de seu ganha-pão.
Há uma razão para os polinésios prezarem tanto pela harmonia e união: elas são o principal alicerce da va’a e nada se sustenta por muito tempo sem um bom alicerce.
“Vishe, é muita treta! É arriscado envolver nossa marca nesse ambiente”.
Como exemplo prático da consequência negativa da falta da harmonia na va’a vou relatar uma história que vivi: tenho um amigo que rema da canoa e ocupa o cargo de gerente de marketing de uma grande marca de surfwear.
No início do ano, estávamos conversando sobre a grande quantidade de pessoas que estão remando de va’a no Brasil. Perguntei então se a empresa dele não teria interesse em patrocinar alguma prova de Brasileiro ou atleta de va’a, afinal, é um esporte que tem uma forte ligação com surf. A resposta foi: “Vishe, é muita treta! É arriscado envolver nossa marca nesse ambiente”.
Estaria ele exagerando? Creio que não. Faço a cobertura de diversos esportes, para diferentes veículos de mídia. Falhas e descontentamentos, ainda que não desejáveis, acontecem regularmente. Mas nada que se compara com o que estamos vivendo hoje nos eventos de va’a.
Não se trata de isentar os organizadores e CBVA’A da responsabilidade de realizarem boas provas, mas é triste ver que, ao menor sinal de falha, boa parte dos remadores não dialogam e não se escutam.
E se não há diálogo, não há entendimento e nem compreensão da responsabilidade de cada um. Por trabalhar nos bastidores, estou em contato constante com o pessoal do staff e a reclamação de maus tratos, estrelismos e até xingamentos que esse pessoal recebe de parte dos atletas é recorrente. Quem trabalha com bom humor sendo desrespeitado?
Do lado dos atletas, vejo reclamações justas, outras, nem tanto. Em particular, a disposição em propagar críticas infundadas e até mentiras.
No caso do Brasileiro de Va’a realizado no último final de semana, em Búzios, muitos espalharam a informação inverídica de que não havia água nem mesa de frutas. Teve gente protestando até da queda do sinal da transmissão ao vivo da prova, que infelizmente aconteceu na chegada da Open Feminino, propondo que isso seria “proposital”, pois o organizador e a CBVA’A querem “prejudicar as mulheres” (sim, nesse nível).
Houve espaço também para o deboche e o desrespeito aos símbolos do esporte. Em uma lamentável atitude antidesportiva, uma competidora fotografou um troféu da competição no chão, como se fosse um suporte de porta, e compartilhou a imagem em sua rede social. Na legenda, ela sugere que o troféu do campeonato brasileiro teria mais utilidade dessa forma.
A CBVA’A, inacreditavelmente, até o momento, não se manifestou sobre esse ato de indisciplina. Se um competidor da WSL, por exemplo, criticar agressivamente a entidade e seus símbolos publicamente, ele está sujeito a diversas punições e até banimento.
Em 2017, Filipe Toledo pagou uma multa e foi suspenso de uma etapa do circuito mundial de surfe por xingar os juízes de prova após ser eliminado em sua bateria. A WSL, como qualquer entidade séria, sabe que atitudes como essa prejudicam bastante a imagem de qualquer esporte e no final todos perdem, inclusive os atletas. Por isso age com rigor e exige disciplina.
Felizmente, houve também quem prestasse o devido respeito a um troféu de campeonato brasileiro. Esse emocionante depoimento do campeão brasileiro de parava’a, Arthur Pessanha, mostra a dimensão que uma conquista nacional representa:
Mas, voltando ao brasileiro de Búzios, para além do escárnio, é importante dizer que a prova recebeu críticas justas e que merecem ser ouvidas.
A mais grave de todas diz respeito à entrega de gel com data vencida no kit de alguns atletas. Não há o que dizer. Uma falha que, inclusive, já está sendo apurada.
Sobre a área destinada às canoas, muitos reclamaram da qualidade do espaço. Acho uma crítica justa, principalmente em relação às expectativas que foram criadas. Isso é complicado. Lá fora, esse é um item que praticamente não existe nas provas. Cada um é responsável por seu equipamento. Mas se a CBVA’A e o organizador oferecem esse atrativo, então as condições do lugar precisam ser claras.
Como em qualquer lugar, ideias são bem-vindas e críticas inteligentes também. O santista Cauê Serra, por exemplo, não se furtou em criticar a pouca informação sobre os percursos da prova, mas também reconheceu os esforços da organização para manter a prova desafiadora e dentro de um nível de dificuldade que se espera de um campeonato brasileiro.
Já o campeão da V1, Robert Almeida, foi bastante duro em suas críticas, algumas com as quais eu concordo, como o caso do gel e o tamanho reduzido da raia (de 16 para 14 km), que, de fato, pode interferir em um resultado. Mas o campeão não teve o cuidado de verificar a fake news sobre a falta de água e frutas antes de fazer sua crítica.
Também é evidente que, de uma forma geral, o povo brasileiro está com um sentimento de insatisfação generalizado por conta de tudo que vem ocorrendo no país nos últimos anos com a política e as consequências da pandemia.
Vemos o reflexo disso em nosso esporte e alguns estão se deixando levar por esse sentimento de intolerância. A impressão que fica é que há uma vontade muito maior em “ter razão” do que em “resolver”.
Atletas são dignos de respeito, assim como as pessoas que fazem os eventos, sejam organizadores, entidades ou o staff. E, hoje, cada um desses atores tem sua parcela de responsabilidade em relação a tudo o que está acontecendo.
A questão é: Quando todos têm argumentos válidos e opostos em uma discussão, pode ser difícil determinar quem está “certo” e se não há disposição para o diálogo, mas só para as ofensas, jamais haverá progresso.
A boa notícia é que há um movimento de remadores articulando a formação de uma associação de atletas de va’a para dialogar e propor melhorias às etapas do campeonato brasileiro. Uma inciativa super importante, pois, como bem lembrou o remador carioca Igor Lourenço em uma conversa sobre esse tema, da forma como a crise do va’a brasileiro está sendo levada, todos nós sairemos perdendo.
Aloha kekahi i kekahi.