
Caiçaras de Piratininga defendem sua tradição em ‘A Rota da Canoa’
Documentário "A Rota da Canoa" traça uma jornada às raízes da comunidade caiçara de Piratininga enquanto ... leia mais
Não vou mentir: nunca fui um verdadeiro defensor da cultura havaiana. Não tenho tatuagem de tartaruga ou polinésia, meu clube e minhas canoas não têm nomes em havaiano e, sendo bem sincero, até acho meio forçado quando vejo “alguns” cantando E Ala Ê como se fosse um ritual obrigatório.
Mas sempre admirei — e muito — o espírito de irmandade que existia no mundo da Va’a. Aquele sentimento real de união, de querer estar junto, de estender a mão sem perguntar de que clube você é. Era diferente. Enquanto outros esportes se afogavam em vaidade e rivalidade, a canoa polinésia parecia um refúgio de respeito mútuo, de troca genuína e de um certo código não escrito entre aqueles que dividem a mesma paixão.
Não importava se você era iniciante ou campeão mundial. No final das contas, todos estavam juntos por um mesmo motivo: o amor pela canoa, pela natureza e por algo que ia muito além de medalhas ou curtidas. Mas alguma coisa mudou. E não foi sutil.
“Hoje, há muitas equipes de competição, mas pouca conexão. Muita técnica e preparo, mas pouca empatia. E uma pressa absurda por visibilidade, reconhecimento e aplauso”
Hoje, o que se vê é uma disputa velada — e, em alguns casos, escancarada — por espaço e prestígio. A Va’a virou palco. E palco, muitas vezes, é território de ego, ciúme e vaidade. O que antes era “aloha” virou uma competição tóxica. Clubes que se fecham, atletas que se sabotam entre si, equipes que recrutam na surdina remadores, e amizades que desmoronam por causa de disputa.
O espírito de “ohana” se perdeu entre interesses pessoais e rivalidades mal disfarçadas. E aquele discurso bonito de “espírito va’a” virou apenas legenda de Instagram — enquanto, nos bastidores, muita gente torce é pra ver o outro afundar.
Talvez o problema não seja a competitividade — porque ela é natural e até saudável. O problema é quando a competição corrompe os valores que fizeram esse esporte ser o que é. A Va’a nunca foi sobre ser apenas o melhor. Sempre foi sobre fazer o melhor junto com os outros. Foi sobre remar com quem nunca remou, ensinar sem esperar algo em troca. E, claro, festejar a vitória dos outros como se fosse a nossa.
Hoje, há muitas equipes de competição, mas pouca conexão. Muita técnica e preparo, mas pouca empatia. E uma pressa absurda por visibilidade, reconhecimento e aplauso — mesmo que isso custe o que havia de mais bonito nesse esporte: o senso de pertencimento.
Resgatar o espírito da Va’a não significa bater tambor em nome de uma cultura que muitos mal conhecem ou terão o privilégio de vivenciar de perto. Significa voltar ao essencial: ajudar sem interesse, remar com humildade, respeitar quem veio antes e abrir espaço para quem está começando agora. Significa parar de transformar o esporte em um campo de guerra e lembrar que, no fim das contas, estamos todos na mesma canoa — literalmente.
O espírito da Va’a pode até ter ido remar… Mas ainda dá tempo de remar atrás dele — e trazê-lo de volta.