Va’a de Niterói e lições a serem aprendidas

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Va'a Niterói
Encontro promovido no último final de semana pela ANVA’A reuniu mais de 300 remadores e cerca de 50 canoas. Foto: Divulgação ANVA’A

Olá, pessoal, tudo bem? Muito tempo que não escrevo, mas hoje, dia 16 de dezembro, decido escrever após um encontro com mais de 300 remadores (isso mesmo – trezentos remadores!) e cerca de 50 canoas para encerrar o ano de 2024 da va’a em Niterói.

Essa confraternização de canoas já acontece a muitos anos na Prainha de Piratininga. Não lembro exatamente quando, mas, se não me engano, a primeira rolou no final de 2007. Era um encontro entre os clubes do Rio de Janeiro e de Niterói.

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Ano após ano, o cenário foi se transformando: alguns períodos com mais canoas, outros com menos. Houve também o impacto da pandemia, que, embora pareça algo distante, aconteceu há muito pouco tempo!

Esse ano, a confraternização foi um sucesso absoluto. A Associação Niteroiense de Va’a (ANVA’A) atuou junto ao Exército Brasileiro e conseguiu pela primeira vez um desembarque na praia do Rio Branco, uma linda praia fechada para os civis e, por consequência, muito limpa e bem cuidada, fora o visual surreal que essa praia tem! Clubes da região oceânica, da Baia de Guanabara e alguns do Rio vieram e se uniram em uma roda de energia que há muito tempo eu não via! Deus presenteou com um mar lindo e um dia de sol radiante para essa remada! Na volta, especialmente, parecia uma procissão de canoa, uma ‘barqueata’!

Quem estava remando se sentia parte de um momento realmente especial. Quando vi todo esse cenário, pensei: “Que coisa mais incrível que estou vivendo quando completo 19 anos de remada exatamente em dezembro!” E aí minha cabeça começou a refletir sobre o que fez esse va’a ficar novamente tão harmônico. Quais lições podemos aprender sobre tantos anos? Quais os erros, quais os acertos?

Va'a Niterói
As areias da praia do Rio Branco foram tomadas pelas canoas, o que legou Douglas Moura a refletir sobre o atual estágio da va’a em Niterói e a relação entre os clubes da cidade. Foto: Divulgação ANVA’A

Isso vem de mim, de um cara que durante anos polemizei, entrei em brigas que não eram minhas, que me achei por alguns momentos “dono da verdade”, e sim, um cara que muitas vezes deixei o ego me cegar quando a conquista não era minha. Esse ano, não sei porque, talvez a maturidade, me fez parar com essa postura embativa e pedir desculpas para muitos amigos que deixei para trás por causa de ego, e reatei inúmeras amizades perdidas nesse tempo.

Tenho percebido que a Va’a de Niterói alcançou um nível de maturidade admirável. Às vezes, é preciso tempo para amadurecer. Esse mesmo tempo, que sem dúvida tem o poder de curar, pode ser visto como uma manifestação de Deus. Afinal, se Deus cura todas as coisas, o tempo, em sua essência, reflete essa capacidade divina: ele ameniza mágoas, cicatriza feridas e nos ensina a pedir perdão e a perdoar.

Voltando então ao que aconteceu na Va’a de Niterói e que certamente servirá para muitas cidades que venho percorrendo como Santos, Rio de Janeiro, Cabo Frio, Florianópolis, cidades pioneiras na va’a nacional.

Na essência todas as bases vieram da Lanakila a nossa matriarca da canoa e já contada e “versos e prozas” em canções, reportagens e artigos científicos. Quando essas bases são fundadas em uma determinada cidade, quem fundou torna-se o pioneiro e a partir daí nascem os “pais” da canoa na cidade A ou B. Naturalmente essas pessoas carregam dentro de si uma filosofia de ensino, uma filosofia de va’a.

Naturalmente também se torna a vontade dos alunos em seguir seu próprio caminho. Ou por discordar da filosofia, ou mesmo como uma oportunidade de viver do seu sonho, viver do mar! Ocorre que muitas vezes essa ruptura não é fácil, como não é para um pai ver seu filho sair de casa e ganhar o mundo. Fácil ou não, faz parte da vida, do fluxo da vida.

Dessas saídas começam as rusgas, um falando do outro, porque deveria ou não deveria abrir uma base e aquele amigo, pupilo passa a ser não mais seu pupilo, e sim seu “concorrente”!

A partir daí tudo muda. Ambos passam a se olhar na água querendo um ser melhor do que o outro, ganhar mais do que outro, ter mais direito que o outro. Até que esse pupilo que um dia saiu das asas do seu primeiro mestre sofre a mesma coisa e age como seu mestre agiu: Trata o seu pupilo igual seu mestre outrora lhe tratou: Como um inimigo. E essa animosidade é repassada aos alunos e gera uma cadeia de animosidade na água onde ninguém fala com ninguém, onde um não pode remar no clube de outro que já foi seu mestre, seu mentor, seu brother de tantas aventuras e de tantos aprendizados.

Tem também os alunos que migram de um clube para o outro, e quem perdeu o aluno fica logo achando que o outro veio e o assediou. E tem aquele que abre a base exatamente ao lado de quem foi seu professor e aí a animosidade fica ainda mais exacerbada.

Va'a Niterói
remadores se preparam para formar a imensa roda de energia que marcou o encontro. Foto: Divulgação ANVA’A

Claro que tem aqueles que fazem realmente maldade de diversas formas, boicotam canoas dos outros roubando cabos, vandalizando equipamentos alheios. Esses não vêm ao caso e são uma minoria, muito mínima, entre todos os casos e naturalmente são expurgados da Va’a pela própria canoa. Poderia citar muitos outros exemplos aqui de causas que causam animosidade, isso vou deixar para o leitor refletir e colocar nos comentários.

Conversando recentemente com a Luiza Perin, Bruno Hau e Bruninho Couto, irmãos do mar e que vivemos todas as fases acima, hoje enxergamos uma va’a diferente em nossa cidade. Mais harmoniosa. Não que todos falam ou se dão bem como todos, mas sim, todos se respeitam e se precisar de ajuda no mar pode ter certeza que será ajudado independente da bandeira.

Comecei falando sobre o tempo. Que chamei de “Deus”, por curar. Niterói está finalmente sendo curado. Nós, e aqui me permito usar a palavra não como “pais”, mas, como “pioneiros”, também estamos sendo curados pelo tempo.

Não há mais espaço para novas bases, talvez se garimpar muito bem, uma, duas bases ainda podem ser abertas, mas não mais a loucura que foi de 2017 para cá, onde há atualmente mais de 50 núcleos de va’a. Isso, por si só já gera uma acalmada, entre os clubes. Passamos a ver sempre os mesmos donos das bases na água e ninguém fazendo um mal real a todos.

Aprendemos que um novo dono de base pode ser (e é) um concorrente, contudo, antes de ser concorrente, pode ser a pessoa que vai te dar a mão quando você mais precisar. A concorrência é livre e cada clube tem sua própria filosofia. Uns competem, outros fornecem lazer, outros aliam técnica sem competição, outros são focados em travessias… Com o passar do tempo, os próprios donos das bases passam a indicar alunos com perfis diferentes de sua filosofia para aquela base amiga que segue o que o aluno está buscando. Se torna uma concorrência e ao mesmo tempo uma união, um companheirismo. O verdadeiro ganha-ganha. Além disso, ter uma base ao lado se torna um ponto de apoio valioso, seja para suprir a falta de uma borracha, um balde ou qualquer outra necessidade. É sempre melhor contar com alguém ao seu lado em quem você pode confiar, do que olhar para o lado e perceber que não há ninguém para ajudar.

Há o amadurecimento das relações interpessoais. Quem antes não se falava, passa a entender que na maioria das vezes a briga motivadora não teve nada de mais a não ser “dois bicudos” cabeça dura com egos inflados, que achavam que a opinião tinha que ser a sua e outras não serviam. Pronto, animosidades, xingamentos, e, por fim, o fim de uma amizade. Tudo isso vai ficando para trás com o tempo e as pessoas passam a entender que simplesmente não vale a pena perder amizades de 10, 20 anos por meros 10 minutos de desentendimento. É tão bom reatar!

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Os donos das bases passam a se enxergar como amigos uns dos outros ou no mínimo se aceitam, o que gera a possibilidade de um aluno remar no outro clube sem necessariamente estar migrando. Quantas pessoas amigas remam em clubes diferentes? E que querem remar juntos e ao mesmo tempo se identificam com o clube ao qual pertencem? Uma remada passa ser entendida como um momento entre esses irmãos e pode ser tanto no “clube A”, quanto no “clube B”. Não importa. Desde que haja um respeito do não aliciamento destes remadores quando na sua base.

Abordando esse tema, vem outro quase na sequência: remador não tem contrato com clube! Na verdade, ele paga para remar na maioria das vezes. Cabe ao clube cativar ele diariamente fazendo com que ele não tenha vontade de remar em outro lugar, mesmo eventualmente remando em outro lugar. Ninguém consegue aliciar alguém que está feliz onde está! O livre arbítrio é do aluno, salvo se um contrato de fidelidade, que eu particularmente desconheço, existir.

O que posso concluir, e que quero deixar de mensagem depois de todo esse movimento que vi sábado, dia 14/12, e de tantos anos me dedicando à canoa polinésia, é que estamos vivendo um momento muito bacana na minha cidade, Niterói. E se posso dar um conselho aos lugares que não tem a va’a há tanto tempo é que: aprendam com nossos erros! Iniciem um processo diferente, não briguem com o seu vizinho de base. Promova uma va’a pura, seja na raia de competição ou nas travessias. Seja gentil na água – “gentileza gera gentileza”!

A canoa nos ensina tantas coisas, a filosofia do nosso esporte é a coisa mais linda do mundo. Temos um privilégio e uma enorme responsabilidade (kuleana!). Não julguem o tanto que eu já julguei e sempre me arrependi. Olhe para dentro da sua própria base e melhore internamente sem se preocupar com “a grama verde do seu vizinho”, e estude para ti. Se te chamarem para dar uma opinião, dê, caso não, não dê. Ensine sem bater no outro. Ensine pelo exemplo, não pelo “chicote”.

Muitos leitores podem pensar ao ler isso: “Que grande hipocrisia vindo de Douglas, um cara que mais fez isso, bateu, botou a cara” – e apanhei muito também! E me arrependo de muitas vezes que fiz mal a alguém.

A maturidade demorou mas bateu na minha porta e humildemente deixo as lições aprendidas por mim e pelo que vejo na va’a de Niterói. É tão mais fácil copiar algo que deu certo! Pula-se inúmeras etapas e talvez a mais difícil delas depois: reconhecer os erros e pedir perdão!

Parabéns a diretoria da ANVA’A pelo lindo movimento de sábado. Parabéns remadores de Niterói.

Encerramos esse ano com o coração cheio e águas coloridas! Que venha 2025! Boas festas e um próspero ano novo!

Aloha!  

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