
Largando de Recife, Igor Cruz vai à Fortaleza remando de caiaque
Expedição Recife x Fortaleza faz parte de um projeto de Igor Cruz de percorrer a costa brasileira a bordo ... leia mais
A escuridão das 5h da manhã de um sábado de junho ainda era completa, mas a agitação no Deck do Pescador, em Santos, era movida por uma energia contagiante. A temperatura de 16 graus, resultado de uma frente fria que chegara no dia anterior, cortava a pele, mas não o nosso ânimo. Ali, 28 remadores, parte de um grupo de 56 aventureiros, estavam prestes a iniciar um desafio de 110 quilômetros pelo mar: a travessia de canoa polinésia até Ilhabela.
Nossa frota era composta por duas canoas V6, gentilmente cedidas pelo amigo Celso Filetti, e um barco de apoio que seria nosso refúgio, nossa cozinha e nosso dormitório flutuante pelas próximas horas. A previsão era de 12 horas de remada, mas a expectativa era de muito mais do que um desafio físico.
A matemática da expedição era uma dança constante: doze remadores na água, enquanto os outros descansavam, se alimentavam e se hidratavam no barco de apoio. A cada hora, ou aproximadamente 10 quilômetros, fazíamos a troca. A organização, liderada pelo experiente Fabio Ungaretti, era impecável. As trocas eram, sempre que possível, “secas”, com a canoa encostando no barco para que pudéssemos trocar de lugar sem cair na água gelada.
As equipes se misturavam a cada troca. Leme, bancos, canoas, tudo mudava. O objetivo não era competir, mas experimentar, desfrutar da sensação de estar ali, no meio do oceano, impulsionado pela força dos amigos. A camaradagem era palpável. Cada um levou sua própria comida e hidratação, mas na prática, tudo era compartilhado. Frutas, sanduíches, isotônicos e os queridinhos da energia rápida – paçocas e jujubas – passavam de mão em mão.
O mar, agitado por um swell recente, nos presenteou com trechos de downwind, onde as ondulações nos empurravam, tornando a remada mais fluida e veloz. Mantivemos uma média impressionante de 10 km/h, e a rota, traçada em uma linha quase perfeita, nos poupou 10km do previsto.
Dizer que a parte mais difícil de remar 110 quilômetros foi ficar parada. Mas foi. Enquanto remávamos, o corpo aquecido pelo esforço não sentia o frio, e o foco no movimento nos blindava do enjoo. No barco de apoio, porém, a história era outra. O balanço do mar agitado era um teste para o estômago, e o frio se tornava um adversário real.
Ficar molhada, parada, por uma hora até a próxima remada foi, para mim, o maior desafio. A solução vinha em forma de ponchos, casacos, chá quente e, principalmente, uma boa resenha. A união do grupo transformava o desconforto em mais um capítulo da aventura.
Passar quase 12 horas no oceano é um convite à introspecção. Olhar o horizonte infinito, ver o continente se distanciando e as ilhas surgindo como miragens, nos coloca em nosso devido lugar. Somos pequenos diante daquela imensidão. E, ao mesmo tempo, somos testemunhas privilegiadas de sua beleza cíclica: a escuridão dando lugar ao nascer do sol, as cores mudando ao longo do dia, o avistamento de tartarugas marinhas e aves diversas.
Essa conexão profunda com a natureza também traz uma consciência dolorosa. Encontrar embalagens plásticas flutuando no meio do nada é um soco no estômago. É a prova de que nosso estilo de vida insustentável chega até os lugares mais remotos. Voltar para casa e não repensar o consumo, o descarte, o plástico de uso único, torna-se impossível. Como diz o ditado, a gente só cuida daquilo que ama, e para amar, é preciso conhecer.
Chegamos em Ilhabela por volta das 16h30, meia hora antes do previsto. Fomos recebidos com festa pela equipe que faria o trajeto de volta e por familiares. A sensação era uma mistura de euforia e gratidão. Naquela noite, Fabio ainda organizou um jantar de confraternização, onde as tripulações de ida e volta puderam trocar histórias e celebrar.
Esta expedição, que não acontecia com essa estrutura desde 2010, foi um sucesso absoluto. A experiência do organizador e o preparo de todos os envolvidos – um grupo heterogêneo de educadores físicos, arquitetas, engenheiros e comunicadores, com idades entre 15 e 67 anos – garantiram que não houvesse imprevistos.
Para a tripulação da volta, a jornada começou sob um céu que se pintava de laranja com o nascer do sol atrás da Serra do Mar, um espetáculo que incluiu até um arco-íris em alto mar. Conforme me relatou Cauê Serra, capitão do Hoe Mana Canoe Club, a equipe enfrentou um vento contra persistente durante todo o percurso e uma densa névoa que escondia o continente, transformando a ilha do Montão de Trigo no único e crucial ponto de referência por grande parte do caminho. Apesar da busca por baleias não ter sido recompensada, a experiência foi marcada pela sinergia entre os clubes: a equipe do Canoa Caiçara iniciou a remada, e a do Hoe Mana a concluiu, sendo recebida de forma emocionante em Santos pela tripulação da ida, coroando a expedição com um forte sentimento de união e missão cumprida.
Como sempre digo: “experiências grandes, engrandecem”. Voltei para casa com a bagagem cheia. Cheia de aprendizados, de amizades fortalecidas e com a certeza de que o maior preparo para uma jornada como essa acontece muito antes, nos treinos diários, na alimentação, na disciplina. A travessia é apenas o palco onde tudo isso é colocado à prova.
O cansaço? A gente só sente depois, e ele é só um detalhe perto do que levamos para a vida. E pelo visto, novas histórias virão. Ao que tudo indica, a próxima aventura já está sendo desenhada: Paraty x Santos. E eu mal posso esperar.