Conheça a história da 1ª equipe feminina a cruzar o Pacífico remando
Em janeiro de 2016, a Coxless Crew entrava para história por ser a 1ª equipe feminina a completar à remo ... leia mais
Quanto vale um sonho? Difícil dizer. Todo sonho tem seu custo. Colocar uma canoa para surfar a Pororoca do Rio Mearim, no Maranhão, é um desses sonhos cujo custo é elevado. E nem estamos falando do financeiro – apesar dele existir, claro – mas do custo do tempo, do custo logístico, do custo do planejamento, do custo emocional…
E olha que essa tarefa se torna um pouco mais simples se a gente considerar que o surf na pororoca, de pranchinha, já está estabelecido há cerca de 25 anos. Na primeira expedição Anamauê na Pororoca, que fizemos em 2022 (integrada por Douglas Moura, Augusto Donadel, Helio Valente e eu, Alan Bordallo), pudemos ver a logística desenvolvida para operacionalizar o surf na pororoca funcionar e puxar dali o que seria adaptável para a canoa.
Com uma temporada de va’a na pororoca nas costas, resolvemos neste ano voltar ao Rio Mearim. Convidei o Douglas Moura pra novamente ser o leme e disse que desta vez teríamos como base a cidade de Vitória do Mearim. A ideia era repetir a experiência, mas agora montando a logística para fazer com que essa fosse a trip da canoa na Pororoca.
Pra chegar ao resultado que esperávamos – otimizar a quantidade de ondas que a canoa pode surfar na janela de 4 a 5 dias que a pororoca se manifesta no Mearim – o primeiro passo foi convidar a Amazon Extreme, que realiza expedições de water sports na Amazônia, para fazer nossa segurança náutica e garantir um jet ski à disposição da canoa. O piloto era simplesmente Mauro Pontes, que há 25 anos foi o primeiro a pilotar um jet ski numa pororoca para resgatar Noélio Sobrinho e Gilvandro Almeida, dois dos caçadores de pororoca pioneiros.
Em seguida, convidamos Ádamo Mello para ser o cara dos registros. E pra fechar montamos o time com alguns cascas grossa do Caruanas Va’a: Rodolfo Carvalho, Igor Bonna e Rafael Black.
Só que a dificuldade logística, de planejamento, de custos e de montagem de time é só a ponta do iceberg. Apesar disso já consumir bastante tempo e nervos, nada do planejamento prévio garante um bom desempenho nesta onda, que entre uma lua e outra altera o fundo do rio e muda de característica. É preciso atenção máxima, do momento que vamos pra água até a hora de sair. E nesse ano a gente pegou a onda, surfou a onda e tirou onda.
Chegamos na comunidade do Tabocal no domingo, dia 5, à noite, depois de uma viagem de quase 16 horas pelas esburacadas estradas maranhenses. Puxamos a carretinha com a canoa num Etios hatch, o que nos fez vir com o máximo de cuidado possível nessa jornada. O domingo serviu pra gente se ambientar no lugar que serviria de base para os dias seguintes: a comunidade do Tabocal, que fica de frente para a bancada batizada de Retão do Testa, justamente a que queríamos nos tornar especialistas nessa trip. Rio abaixo, tínhamos a bancada dos locais (que não queríamos ir muito, por causa do crowd dos surfistas locais), e rio acima a do Paredão da Morte, que costuma ter as maiores ondas.
Pouco tempo depois já estaríamos ali de volta. A Pororoca te exige sacrifício: você acorda 3h30 da manhã e, no mais tardar, 5h tem que estar com tudo pronto. Afinal, ela não espera ninguém. Chegamos cedo e terminamos de preparar a canoa. Douglas fez o estaiamento, colocamos os adesivos dos patrocinadores, reforçamos a amarração e a canoa Poroc Poroc (nome pelo qual os povos ancestrais chamavam a pororoca) estava pronta para a ação.
Colocamos o primeiro dia como dia de testes, para sentir a onda, sentir a regulagem da canoa, testar o sistema de reboque que desenvolvemos e até fazer um huli pra saber como iríamos nos comportar. fomos pra água e usamos um pouco da experiência do ano passado para nos posicionar a cerca de 3 km do nosso ponto de saída, local onde a pororoca já poderia aparecer com força e tamanho bons para a canoa.
A canoa tem uma grande vantagem na pororoca: somos um veículo, então o jet ski até certo ponto é dispensável, já que podemos nos deslocar com facilidade para chegar à bancada e para voltar pra base – ainda mais com uma corrente de cerca de 5 km/h sempre a nosso favor. Nos posicionamos e por volta de 7h da manhã a onda começou a aparecer no horizonte. Com calma levamos a canoa para o meio do rio, buscando a junção entre a espuma e a parede. Conforme a pororoca chega perto, o estrondo aumenta de volume e a adrenalina dispara. Mas estávamos bem focados e, apesar de termos variado um pouco à esquerda na hora do drop, logo acertamos e entramos na onda.
Manter-se na onda requer um trabalho em equipe também. Temos que evitar a espuma, que dá uma turbulência na canoa, mas a parede puxa a gente pra trás, então o ideal é transitar entre esses dois pontos, como numa prancha. Em alguns momentos é preciso dar mais velocidade e o time precisa estar atento para remar; em outros, basta que todo mundo encaixe no balanço do “chute” pra manter a canoa embalada. O time trabalhou bem e nosso dia de teste já deu pra fazer a mala com imagens: foram 12 minutos de onda no Retão. A trip começou com o pé direito pra canoa, enquanto que a galera do surf sofreu com problemas técnicos e viu a onda passar.
O sucesso no primeiro dia nos deu liberdade pra ousar um pouco mais no segundo: decidimos iniciar os trabalhos no Paredão da Morte e depois conectar a canoa no jet pra pegar no Retão. Tudo parecia alinhado mas a noite as coisas mudaram: Douglas e eu passamos mal, com vômito e problemas intestinais. Não bastasse o impacto físico disso, ainda tinha o emocional: no ano passado, quando decidimos ir pro Paredão, Helio Valente e nosso guia Gilvandro passaram mal e tivemos que abrir mão do jet ski de apoio para que eles fossem atendidos. Parecia que o filme estava se repetindo.
Antes da água fizemos nossa roda de energia e pactuamos que seria novamente um dia de raça. Canoa na água, fomos remando mais uma vez até o pico, porém distantes cerca de 9 km do nosso ponto de saída. A remada serviu pra irmos deixando a adrenalina baixar e nos concentrar na missão.
A bancada do Paredão da Morte fica num trecho bem mais largo do Rio Mearim. Terminar bem a onda é fundamental: se terminássemos muito próximos da margem direita, a correnteza da pororoca poderia nos levar para o Rio Pindaré, o que demandaria resgate contra a corrente e acabaria com o plano de pegar duas bancadas no mesmo dia.
Cerca de 7h40 avistamos a onda vindo ao longe e passamos a nos posicionar. Mais uma vez a onda seria uma esquerda. Acertamos o drop e começamos a surfar fácil. Porém, à medida que a pororoca percorre esta bancada encontra um rio afunilando, e sua força se concentra no meio, o que nos fez perder a onda da frente e encaixar na segunda. A vaga entre uma onda e outra nesta bancada é bem mais curta e mesmo tentando colocar o peso na popa da canoa o volume de água que entrou foi enorme. Ainda assim conseguimos surfar até o final da bancada.
Mauro estava com o jet muito bem posicionado e atracamos para que nos levasse até o Retão. O sistema de plug com mosquetão estava com acesso muito fácil para mim, que fui de voga. Enquanto éramos puxados, o banco 2 esgotava a canoa. Chegamos rapidamente no Retão e desconectamos num ponto bem inicial da bancada, mas pegamos a pororoca ainda sem força. Foi preciso conectar novamente para que o jet nos posicionasse no ponto certo – e aí atestamos a eficiência do nosso sistema de reboque, que pode ser conectado e desconectado nas duas extremidades.
Posicionados no local certo, pegamos a boa. A onda no retão estava especial, com parede maior e lisa. Quando dropamos era uma esquerda, mas ao longo dos cerca de 3 km que percorreu, ela se transformou em uma direita. Conseguimos nos manter o tempo inteiro na onda da frente, com total controle da canoa. E por pouco não conectamos com a bancada seguinte, dos locais: ao todo foram cerca de 15 minutos de surf nessa onda. Acreditamos que até hoje ninguém pegou uma onda tão longa de canoa no planeta.
Os 15 minutos de onda nos deram imaginação o suficiente pra consultar o que seria necessário para estabelecer um recorde no Guinness Book, e então nosso planejamento para o dia 3 passou a ser o de ter um registro completo em vídeo do tempo de onda (o que conseguimos no dia anterior foi um registro parcial, já que o cartão de memória encheu antes do que esperávamos, além do registro de atividade no Garmin). Pra tarefa ficar ainda mais difícil, decidimos liberar o jet ski da nossa operação para auxiliar a galera do surf, que ainda estava no 0 a 0 devido a falhas nos jet skis e banana boats utilizados.
Descemos a canoa e nos dirigimos para a bancada na maior vibe, remando ao lado da galera do surf e do SUP, que também planejavam pegar na bancada do Retão. Nos posicionamos cerca de 100 metros rio acima em relação à galera da prancha – que logo foi resgatada em banana boat e subiu em direção à bancada do Paredão.
Nesse dia a espera durou pouco. Minutos depois de nos posicionarmos a onda começou a se levantar após fazer a curva que separa as duas bancadas. Os dois dias de êxito nos deram calma suficiente para remar para o meio do rio e analisar como aquela pororoca iria se manifestar. Vimos abrir a esquerda e tomamos uma posição mais próxima da margem oposta de onde estávamos. Douglas posicionou a canoa na reta e aguardamos a onda chegar. A essa altura, os jet skis e banana boats que transportam a galera da prancha já chegavam próximo da gente. Eles viram de camarote nosso drop.
Bem à vontade, nessa onda o time se comportou bem e Douglas explorou bem a parede, movendo a canoa das partes mais lentas às mais críticas da onda. Parecíamos estar bem no controle, mas a pororoca muda a cada dia. Perto dos oito minutos de onda, percebemos que a massa d’água perdia força na esquerda e se movimentava mais para o meio. Mas a mudança foi rápida e não tivemos tempo de buscar a parte crítica novamente. Ainda conseguimos ver alguns locais dropando metros à nossa frente, mas pra gente acabou ali…
Oito minutos de onda não é pouco, mas os dois primeiros dias nos acostumaram mal. Apesar de satisfeitos com o desempenho, o sentimento de não ter cumprido a meta nos deixou um pouco confusos. Mas antes da gente começar a se perguntar qual seria nosso próximo desafio o Ádamo Mello encostou na gente e mostrou ainda no display da câmera o tamanho que a onda chegou no Paredão. “Eu acho que tem uns dois metros de onda”, disse o Ádamo. E nosso piloto Maurão sacramentou: “amanhã a gente vai pra lá”. E era isso: pro último dia a gente queria a bomba.
Desde que vimos a foto da onda no Paredão, muitas ponderações surgiram: a onda era muito grande pra canoa? qual o tamanho do risco? pra dropar será que precisamos colocar o peso mais pra trás da canoa? é melhor a gente se posicionar no fim da bancada, pra pegar ela grande, ou dropar lá atrás e ir acompanhando ela crescendo? precisaríamos do jet ski pra posicionar a gente ou daria pra entrar na remada?
Passamos a véspera inteira pensando na estratégia e decidimos por chegar na bancada remando, nos posicionar em uma posição intermediária e contar com o jet apenas para nos levar até a próxima bancada – a gente queria extrair o máximo de cada dia.
Pra fechar a trip tivemos uma substituição no time: Rodolfo, que ainda não tinha conseguido pegar onde no surf (por problemas na infraestrutura) foi de all in e apostou na canoa pra salvar a trip, trocando de lugar com o Black. Ninguém falava muito nesse dia e o silêncio era um bom retrato da ansiedade e apreensão pela onda que naquele dia prometia fazer jus ao nome de Paredão.
Esse deslocamento foi maior: cerca de 8 km até o pico. E aproveitamos para, depois de fazer a curva para o Paredão, explorar e conhecer melhor aquela bancada. Pudemos identificar as partes mais rasas do rio, e apostar que era ali onde a onda ganharia mais tamanho. Avistamos o fotógrafo Renato Chalu no barranco, onde ele pilotaria o drone. Escolhemos nos posicionar cerca de 1 km rio acima, em uma posição onde um furo de rio rasgava o barranco, e poderíamos estacionar a canoa sem a correnteza alterar nossa posição.
Deu-se início à espera. Conversamos um pouco sobre o deslocamento que faríamos para achar a posição do drop; vimos dois pica paus, que nem o do desenho animado, bicarem uma árvore e nos deparamos com a “miragem”: a impressão nítida de que a pororoca está vindo, mas que na verdade é um reflexo da luz do sol sobre o rio ou algum banco de areia molhado, que gera um brilho parecido com o da espuma da onda. Chegamos a nos posicionar no meio do rio e durante um minuto acreditamos que era ela vindo. Mas a ilusão serviu pra gente ver a força da corrente e o tempo que levaríamos para chegar à posição ideal.
Pra mim as duas maneiras mais certas de perceber que a pororoca está realmente chegando são: ver quando a corrente, sempre muito forte, começa a parar; e notar os jet skis aparecendo no horizonte. Os dois sinais logo apareceram e a onda veio.
Tinha parede pra gente desde antes, mas nossa posição era boa. Quando dropamos, a onda tinha um metrinho, os surfistas já estavam nela e a esquerda estava toda livre pra gente brincar. A onda realmente parecia mais potente e engatamos a canoa na diagonal pra esquerda pra aproveitar toda a força dela. À nossa direita, muitos surfistas ainda deitados na prancha e jet skis posicionando outros.
Conforme a onda correu, a parede cresceu. Difícil dizer se era o tamanho que esperávamos, mas era uma parede expressiva e forte. Pegar essa onda era a confirmação do bom trabalho que fizemos na trip, do ponto de vista físico, técnico e logístico. Não podíamos estar mais felizes naquele momento. Mas ainda faltava coisa: um dos jets, pilotado por um famoso surfista de pororoca, cruzou nosso caminho algumas vezes fazendo marola. Acabamos perdendo a primeira onda mas seguimos na de trás. Persistimos e alcançamos a onda da frente novamente, conseguindo dropar e despencar parede abaixo. Caímos na espuma e a canoa perdeu o controle. Seguramos o quanto foi possível e evitamos o huli, mas a canoa ficou alagada. Em um momento fui cuspido da canoa pela pressão da água e tomei mais duas da série na cabeça. Mas até o perrengue foi comemorado. 4 dias, 5 ondas e uma certeza: essa foi a trip da canoa na pororoca. Anamauê!