Quem tem medo da canoa virar, tem medo de viver

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canoa virar
“Remar exige mais do que força. Exige escuta. O corpo precisa entender o ritmo do grupo, o tempo do deslizar do barco sobre a água, o peso do vento que te empurra”. Foto: Reprodução de imagem gerada por IA

Este texto nasce das águas do Lago Paranoá, onde uma comunidade de canoeiros compartilha não apenas o esporte, mas também os afetos, os desafios e os silêncios que a vida impõe. É uma homenagem àqueles que remam — na canoa e na existência.

Há semanas que não passam. Ficam. Como cicatrizes na pele, como marcas no casco da canoa. Esta foi uma delas para a nossa base de canoa havaiana no Lago Paranoá, em Brasília. Um remador de outra base se foi pertinho — engolido pelas águas, como quem entende que não se pode vencer o lago. Outro, ainda luta, depois de um acidente que não foi na água: uma moto, um poste, um susto. A vida, afinal, não escolhe o cenário para nos lembrar da sua fragilidade.

A vida, enfim, é uma travessia. Cada um com sua canoa, seu ritmo, seu destino. Há quem reme com força, há quem se deixe levar. Há quem pare para contemplar as margens, e há quem só veja o horizonte. Mas todos, sem exceção, em algum momento da vida, enfrentam os trechos em que o céu escurece e a água se agita.

Remar exige mais do que força. Exige escuta. O corpo precisa entender o ritmo do grupo, o tempo do deslizar do barco sobre a água, o peso do vento que te empurra. A canoa havaiana de seis lugares — a OC6 — pesa cerca de 150 quilos. É robusta, feita de fibra de carbono, muitas vezes imponente. Possui um nome, uma identidade. Mas basta um vento lateral, uma ondulação, um descuido dos seus remadores, e ela vira. Não por fraqueza, mas por natureza. Porque mesmo o que é forte pode tombar. Mesmo o que é belo pode afundar.

O som da canoa cortando a água é quase um sussurro — um deslizar firme, ritmado, que responde ao corpo e acalma a mente. Mas há também o som do esforço: o rangido do Iako, o respingar da água, a tração do remo como uma alavanca. E há o silêncio entre uma remada e outra, onde mora a contemplação, o cansaço, o pensamento.

Fisicamente, remar é um convite à presença. Os ombros ardem, os braços pesam, o tronco gira, o abdômen sustenta e o quadril impulsiona o barco adiante. O corpo inteiro se envolve, como se cada músculo fosse parte da embarcação. Mas há algo maior: o coletivo. A potência de estar em sincronia com cinco outras pessoas, cada uma confiando que a outra vai manter o ritmo, a cadência, o foco. Dentro da água, isso move a canoa. Fora dela, isso move a vida.

E mesmo assim, há dias em que tudo isso parece insuficiente. Em que a água exige mais do que temos. Em que o vento nos testa. Em que o medo nos visita.

Nesses momentos, a fragilidade da embarcação se revela. A madeira range, o corpo falha, o medo se instala. E é aí que se conhece o remador. Não pelo número de remadas, mas pela coragem de continuar — mesmo sem garantias, mesmo sem promessas de porto seguro, mesmo sem um horizonte para contemplar.

Quem prometeu felicidade eterna nunca navegou de verdade. Há trechos em que a dor é parte da paisagem. Há dias em que o remo pesa mais que o braço. E há partidas que nos fazem rever toda a rota.

Mas a canoa segue. Porque viver é isso: remar mesmo quando o rio não colabora. É aceitar que a água pode virar, que o fundo pode aparecer, que o vento pode mudar. É aceitar o Huli, o virar da canoa, como parte da jornada. E ainda assim, seguir. Imua — seguir em frente, com coragem, com fé, com o coletivo.

Porque, no fim, quem tem medo do Huli, tem medo de viver.

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