Uma verdade inconveniente por trás das competições de va’a
Alfredo Piragibe Jr. propõe uma reflexão sobre as consequências da migração de atletas entre diferentes ... leia mais
A Va’a (canoa polinésia) pode ser um projeto apenas para fortalecimento do corpo, um passeio para ver o nascer ou pôr-do-sol, socialização ou pode ser um estilo de vida com foco e conexão com o outro, com o mundo e com a natureza de forma ampliada. Assim como o Yoga que pode ser praticado apenas para alongar o corpo e sentir sensações agradáveis ao final da aula ou como uma forma de estudar e diminuir as volições mentais, controlar emoções destrutivas, equilibrar os ânimos e mais sutilmente: reconhecer a nossa própria natureza de harmonia, equilíbrio alegre e constante.
Chamei o Nicolas Bourlon para conversar porque tenho interesse em aprofundar os temas relacionados à Va’a que era um importante meio de transporte e de travessias em alto mar entre ilhas e que foi fundamental para a colonização do Pacífico pelos povos do sudeste asiático em direção à Melanésia e Fidji, e cerca de 3000 anos atrás em direção à região do triângulo polinésio, passando por Tonga e Samoa Polinésia ocidental até o Taiti e depois até às Marquesas no Leste, Nova Zelândia no sudoeste e Rapa Nui (Ilha de Páscoa) no sudeste.
Nicolas é francês foi iniciado na Va´a em 1981, aos 16 anos, quando a família morava na Ilha Grande do Havaí. Aos 24 anos, mudou-se da França para o Brasil e passou a morar no Rio de Janeiro, em 1991. Em setembro de 2001, conheceu Ronald Williams que tinha importado da Califórnia a Lanakila, primeira canoa polinésia da América do Sul, batizada em 18 de novembro de 2000, marcando o início das atividades do Rio Va’a Clube – pioneiro na América Latina – associação sem fins lucrativos registrada em novembro de 2003, e que tem como foco a inclusão social através de treinos de iniciantes, atletas, paratletas e crianças de escolas públicas. Como remador e diretor desde 2001 e depois como presidente, a partir de 2003, Nicolas se dedicou à consolidação da modalidade no Brasil, iniciando a organização da primeira travessia Rio-Angra e a prova Internacional Rio Va’a em 2002. Iniciou, também, com Ronald Willams, Clovis Racy e Marcelo Depardo, a fabricação de canoas no Rio em 2003.
Quando assumiu o Clube, seus filhos mais velhos eram crianças (2 e 4 anos), e conviviam diariamente com a canoa e competiam nas categorias infantis até representarem o Brasil em campeonatos sul-americanos e o mundial de 2004. Os outros dois filhos que nasceram em 2005 e 2007, literalmente, começaram a remar na barriga da mãe.
Os muitos amigos no Havaí, a família no Taiti e a representação do Brasil na Federação Internacional de Va’a (foi Secretário geral adjunto em 2004 e 3° vice-presidente) facilitaram suas conexões com os atletas e dirigentes. Com sua visão do esporte ancorada na tradição polinésia, espírito de clube e perspectiva competitiva, construiu o Rio Va’a clube através de intercâmbios com atletas de 20 países que vieram competir na prova Rio Va’a (este ano será a 23ª edição) e levou equipes do clube para competir no exterior, como França, Havaí e Taiti.
Eu, Vanessa Mantuani, sou instrutora e criadora do método Yoga Vajra, prática que se baseia na cultura, medicina e budismo tibetanos – há 11 anos. Em São Paulo, as aulas eram patrocinadas pela Secretaria de Saúde e Secretaria de Esportes. Vim morar no Rio e iniciei a prática de Va’a (Canoa Polinésia) há pouco tempo no Rio Va’a Clube. Na primeira aula percebi que era um esporte que integra muitos aspectos de consciência física, foco, força, atenção, conexão e mais. Me alegrei em saber que mesmo uma pessoa “medrosinha” como eu, poderia praticar um esporte no mar. Me encantei com os projetos sociais do Clube. Percebi também que havia muito conteúdo, técnicas físicas e da mente para aprender ali e que muito daquilo tudo se relacionava com a prática do Yoga na vida cotidiana.
E, como tenho essa característica curiosa e entusiasta, pedi para o Nicolas me contar seus sonhos. Ele falou o quanto se alegra de ver seu sonho realizado com pessoas comprometidas e altruístas que fazem parte do Clube e entendem o propósito de oferecer um esporte inclusivo que propõe oportunidades significativas a todos. As contribuições dos alunos permitem financiar os projetos com crianças e jovens da rede pública e de paracanoagem de alto rendimento (desde 2010). No Rio Va’a os diretores são estritamente voluntários e os projetos do clube contam com a ajuda de muitos voluntários, que dedicam tempo e energia diariamente na lógica do espírito Va’a – onde o grupo é mais importante do que o indivíduo como numa família unida.
Perguntei ao Nicolas alguma dica sobre o peperu ou leme (que é quem direciona a canoa) e o que mais me impactou foi ele falar que podemos ver o leme como uma alegoria para a vida e continuou dizendo: “O leme deve se projetar pelo espaço e tempo, sabendo qual é o seu destino, qual caminho escolher e o que vai encontrar nesse caminho (ventos, ondas, maré, pedras, embarcações, entre outras*) e o que é necessário fazer no instante imediato (surfar uma onda, evitar as correntes contrárias, se afastar das demais canoas na largada ou passagens de boais…). Observando o mar, como a canoa e a ama (flutuador) deslizam, vemos que são inúmeras variações e constantes correções de rota para chegar com segurança ao destino num passeio ou treino e, no caso de uma competição, terminar a prova no pódio e principalmente feliz de ter remado em sintonia com a equipe”.
Sobre competição, ele disse que um valor fundamental da Va’a é o respeito pelo outro: mais importante do que ganhar uma prova, é a forma de ganhar essa prova. Pode ser que seja necessário desistir de uma competição para ajudar no resgate de uma equipe ou atleta em dificuldades.
Nesse ponto, vemos a mente da Bodicita, que é um conceito do yoga e do budismo que se refere à mente que busca a liberação, a compaixão, a empatia e a sabedoria para o benefício de todos os seres sencientes.
Falamos também sobre a sincronia na remada – de todos os integrantes – dentro da canoa e comentamos o quanto estamos desconectados, hoje em dia. A tecnologia e suas diversas distrações fazem com que os jovens e adolescentes tenham menos interação com a natureza e menos inteligência emocional. O esporte em equipe faz com que nos conectamos com o outro, já que o objetivo é que a canoa deslize na superfície do mar. ‘Precisão e foco’, disse ele, essa é a única forma pela qual a sincronia acontece.
A relação com o Yoga Vajra se dá pela intenção de trazer, primeiro, clareza ou ‘autodiagnóstico’ de nossa energia dentro da canoa (e, em todos os momentos desafiadores que a vida oferece). A percepção da energia dos nossos elementos da natureza (terra, água, fogo, ar, éter e espaço) pode ser vista sob alguns ângulos diferentes. Em um aspecto mais grosseiro ou palpável, vemos esses elementos em nosso corpo como:
Em um aspecto mais sutil, a medicina tibetana mostra que cada elemento tem ligação direta com as nossas emoções, vemos isso claramente e até usamos alguns termos de maneira comum como: “Estou muito avoado”, significa que está com excesso do elemento ar, e ativar o lung do elemento terra (foco e estabilidade) seria o ideal. Para tanto, o treinamento de asanas (posturas) que exigem equilíbrio por um tempo maior é o ideal. “Estou derretendo em lágrimas”, excesso do elemento água, podemos ativar o elemento fogo (entusiasmo e criatividade) através de posturas que ativam o centro do corpo, onde se localiza o vórtice dessa energia. Então, usar os conhecimentos e técnicas para direcionar a sua energia de forma autônoma é, sem dúvida, um dos grandes benefícios do yoga.
Eu fiquei ouvindo o Nicolas e imaginando como a prática do yoga pode ser essencial para remar em sincronia perfeita. Vi que se entregar à energia e tempo do outro dentro da canoa era uma forma de sair da ideia do individualismo. Percebi o quanto aquilo era importante para formação de crianças e adolescentes, também.
Esse tema me chama a atenção na Va’a – onde tem conexão com o yoga. Por exemplo, dentro da canoa – com mais de uma pessoa – não existe um eu separado. Todos sentem as mesmas dores e alegrias, como o Dalai Lama diz: “Todos aspiram ser felizes e se livrar do sofrimento”, se conseguirmos olhar todos os seres, sem exceção, dessa forma, com certeza a cultura de paz está estabelecida. Mas, o comum é querermos ser mais felizes. Ter mais. Se destacar mais. Queremos mais.
Não existiria depressão se conseguíssemos nos alegrar com a alegria do outro, independente se estamos incluídos ou não. O yoga traz essa visão através de ensinamentos passados de mestre (a) para aluno (a) há mais de 10.000 anos, e na prática física do yoga podemos ver esse conceito em todas as posturas físicas com nomes: Árvore (Vrikshasana) ou Cobra (Bhujangasana) entre outras. Em um sentido mais profundo acalmamos a mente para investigar – através da meditação – nossa natureza que não se resume ao corpo humano. E, a partir desse lugar, de reconhecer a inseparabilidade de todos os seres, e, manifestando-se dessa forma, entramos no caminho de um (a) yogue.
Nesse ponto, Nicolas comentou que “A Va´a é uma inclusão de todas as classes”, concordo. Porque, dentro da canoa, não importa seu cargo, sua posição social, sua conta bancária ou seu número de seguidores nas redes sociais, todos estão sincronizados no movimento e energia, com foco e atenção. O objetivo é atingido com essa integração sem fronteiras de língua, raça, cor ou orientação sexual.
Ter a possibilidade de estar perto do mar, entrar e brincar em sua superfície é uma delícia mesmo. A gente pode dizer: “mas, para isso já existem motores com alta tecnologia”. Exatamente. Remar va´a não tem a ver com velocidade apenas, mas com eficiência de conexão, ritmo e força. E isso é encantador.
São tantas pessoas que têm acesso ao mar no Brasil com oito mil quilômetros de extensão de costa. Imagine quantas pessoas podem se beneficiar.
Mais uma vez agradeço o acolhimento do Clube Rio Va´a, ao querido Nicolas Bourlon pelas generosas instruções e conversa alegre e ao Luciano Meneghello pela oportunidade de compartilhar. Vamos conversar mais sobre as técnicas, dicas e visão de mundo em próximos encontros, conto para vocês por aqui.
*Outra função primordial do leme é antecipar possíveis problemas, desde avarias na canoa até a mudança de tempo… isso começa em terra vendo a previsão de tempo, na praia verificando a amarração da ama e continua durante toda a remada, acompanhando a evolução do tempo e do desempenho da equipe.
Na dúvida, no mar é sempre melhor ser conservador do que ousado e voltar para a praia se as condições não são ideais ou se a equipe é inexperiente; E, mais importante, aprender com seus erros, sendo humilde e ouvindo conselhos e opiniões contrárias.