Lei polinésio: o colar que é um símbolo vivo de uma tradição milenar
Símbolo de uma cultura milenar, o lei, no Brasil conhecido como “colar havaiano”, é uma das formas mais ... leia mais
Em Maori, língua falada pelos primeiros polinésios a habitar a Nova Zelândia (Aotearoa), “Kia Ora” significa algo como: “Que a vida boa floresça”. No sentido literal, ”ora” refere-se a “estar vivo”.
Já a palavra “kia” é a ideia de potência, de crescimento, e transforma “ora” de substantivo a verbo; em vez de “vivo”, passa a ser “viver”, mas um viver adjetivado: um bom viver. Que a vida boa floresça para todos nós, principalmente em tempos desafiadores como os atuais.
Em 2019, tive o privilégio e a sorte de conhecer um dos berços da cultura polinésia na Nova Zelândia e fazer parte de uma comunidade de remadores no sul da ilha, a Waka Abel Tasman além de ter aula com um dos melhores do mundo: Tupuria King.
Foi ali, pelo acolhimento e atenção, que entendi a força do “Kia ora” numa sociedade que não esquece seus antepassados: os Māori.
Ao ter a oportunidade de conhecer lugares e pessoas incríveis parece ser mais fácil perceber o quanto nós vivemos em um pais igualmente (senão mais) impressionante.
Um pouco dessa aventura, que, ao que tudo indica é apenas um primeiro capitulo de outras que virão, eu compartilho agora:
Conta a história que o povo Māori foi o primeiro a chegar à Aoetearoa (Nova Zelândia) saindo de Hawiki com uma grande frota de Wakas (canoas).
Foi Kuramarotini, esposa de Kupe, a primeira pessoa a avistar Aoetearoa: “Uma nuvem, uma nuvem, uma nuvem branca, uma grande branca nuvem” ela teria dito. Essa frase está estampada no Te Papa, museu de Wellington.
No Brasil, entre nossos guaranis, há a lenda da terra sem mal. Nômades, eles percorriam grandes distâncias por terra, os famosos caminhos nominados de Peabiru, que ligavam o Atlântico e o Pacífico, o sul ao norte, o centro às margens.
A pergunta que me surge, ao pensar nos Maori e nos nossos Guarani, é: o que nos faz entrar no mar sem ideia de continentes existentes ou andar pela mata em busca dos horizontes? Não é a nossa racionalidade material. Talvez seja o desejo, a falta ou simplesmente a sensação de que é o que deve ser feito.
Talvez minha ida para Nova Zelândia tenha um pouco dessa busca pela terra sem mal. Que, na realidade, só existe dentro de nós. E não significa um paraíso de prazeres ou bondade angelical.
A terra sem mal, como nos ensinam hoje os guaranis, em especial o seu Tupã, um nativo de uns 115 anos que vive em Biguaçu (SC), refere-se à habilidade em agir atentamente no mundo.
O bem e mal vivem em nós, segundo ele. Nas nossas ações e não nas nossas intenções. E isso é muito próximo do que experimentei na Nova Zelândia.
De qualquer forma, muito diferente das tradições que conhecemos e das pessoas que reverenciamos, meu tempo na canoa é pouco se pensarmos no tempo como uma linearidade cronológica.
Se a canoa polinésia existe há mais de 3 mil anos, não faz nem dois anos que comecei a remar na Kanaloa va’a em Florianópolis, quando pela primeira vez peguei um remo e ouvi falar em sincronia na canoa.
Mas não é o tempo que legitima os amores, certo? Foi lá que a relação com a canoa nasceu e segue crescendo.
Em certa medida inspirada pelo empenho do clube em aprender e ensinar a cultura, a filosofia e os arquétipos das tradições da canoagem polinésia. É preciso destacar o trabalho dos ‘coach’ Alexey e do Antonio e de parceiros de outras bases como o Augusto e a Luiza.
Em Maori amor é “te aroha” que tem um sentido muito próximo ao de cuidar, de desvelar-se e de atenção. “Amar é estar atento para si e para o outro”. Essa frase não é minha, mas concordo totalmente com ela.
Foi o Sean Dalany, de Motueka, professor de artes marciais Maori e com quem tive a honra de conversar e ter uma aula, quem mais falou em amor. Para um guerreiro Maori o mais importante é o amor.
O guerreiro é aquele que cuida. E os movimentos da arte da guerra são muito semelhantes aos dos tempos de paz. É incrível a semelhança entre os movimentos da “Taiaha” (que lembra uma lança) com os movimentos do remo na Waka.
Por sinal ambos, quando não estão sendo usados, ficam com as “pontas” para cima, nunca para o chão. Isso não apenas por razões pragmáticas de não diminuir a eficácia da arma ou da pá, mas porque essas extremidades são onde habitam os antepassados.
Nessa arte do cuidar, para a cultura Maori, os outros são o todo. Um poema Maori diz que o mais importante são as pessoas. E as pessoas são esse todo.
Não há uma seletividade de mais ou menos importantes. São eles homens e mulheres, a natureza, os vivos e os mortos. Um todo integrado e em sincronia.
A sincronia não está só na canoa, ela é parte de um gesto, de uma forma de estar no mundo. Um masculino e feminino, um passado e um futuro presentes, sem as dicotomias cansativas dos nossos dias. Tudo isso regado a muita, muita vontade e coragem.
Não foram poucos os que morreram na resistência e no desafio de preservar a própria liberdade. A coroa britânica se rendeu aos Maori num acordo de paz mal escrito e que gerou mais revolta (Tratado de Waitangi, assinado em 1840).
O resultado foi a típica imposição moral colonialista e uma geração proibida de falar a língua materna. Mas o espírito guerreiro-cuidador preservou a língua, a moral, a forma de estar no mundo.
Hoje, tudo por lá parece renascer em força, forma e hábito. Como se tivessem passado apenas por um inspirar, um tempo de resguardo.
Diferente de nós, ocidentais sem muita memória das nossas próprias origens canoeiras, os Maori e os habitantes de Hawaiki, não tinham um único nome para oceano. Havia, porém, vários nomes para os tipos de ondas.
O nome Pacífico, dado por um explorador inglês, era Moana visto de diferentes formas a depender dos ventos, da estação, da lua e de algo que nos foge aos sentidos. Somos nós que insistimos em catalogar o mundo e engessá-lo em certezas.
Talvez por essa consciência de que vida é movimento em cada entrada e saída do mar os Maori, e aquelas que vivem na sua esteira, tem uma “Karakia”, que pode ser compreendida como uma prece ou um pedido ou um intento, uma reverência e um agradecimento.
Em todo o momento o tempo, que não é linear, é ritualizado no “Hongi”, um cumprimento em que torna o passado presente, o presente atento e o futuro fruto na minha ação no agora.
O “Hongi” junta testa com testa (antepassados), aproxima os narizes (os vivos-presentes) e nos faz respirar duas vezes o mesmo ar (ação de unidade).
Segundo Lee Anne e o Todd, que coordenam a base Waka Abel Tasman e com quem tive a sorte de conviver por muito tempo, não é possível aproximar-se de alguém dessa forma se não estiver em paz consigo e com outro.
Eu até posso apertar as mãos, mas eu não consigo ficar tão perto se algo na minha alma não estiver bem.
Respirar o mesmo ar é algo realmente intenso. Ainda mais em tempos de medo generalizado. É quase um ato subversivo. Algo que, pelo visto, os Maori seguem nos ensinando.
Abel Tasman é uma linda reserva ao sul da Nova Zelândia, o nome é de um holandês que chegou antes dos ingleses, foi o primeiro europeu a aterrissar por lá.
É possível encontrar um parque e uma reserva marinha, um clube e uma base de canoa. Lá a canoa, chamada de Waka, tem sempre dois públicos principais, o turista e os locais.
Aos turistas o passeio é mais suave e a ritualística mais intensa. Aos locais tem os passeios e os treinos para os times e a ritualística do cotidiano.
Eles se organizam em empresas e clubes. As empresas têm um perfil mais de negócio enquanto os clubes de manutenção da cultura visam garantir o acesso à prática da canoa ao maior número de pessoas.
Há, por exemplo, aulas gratuitas de Maori. Antes de vir embora uma escola pública de Nelson contratou o Waka Abel Tasman para que todos, absolutamente todos os alunos, tivessem aulas de Waka / canoa.
Se no sul eu pude viver mais perto a cultura; no norte tive um intensivo de técnica com o Tupuria King.
O que gostei da aula com ele não era tanto o fato dele ser hoje um dos melhores do mundo, mas o quanto isso é resultado de um empenho. Ele fez mestrado para estudar a mecânica do movimento humano na canoa, comparar técnicas, eficiências etc.
Aliou ciência a tradição e não parou de se aperfeiçoar. Isso é encantador na canoa, não existe “o lugar” de chegada, existe movimento, existe uma perfectibilidade constante que está expressa no caráter, na remada, mas, principalmente, na postura fora da canoa.
O mais legal dessas viagens é perceber que vivemos em um lugar privilegiado. O Brasil tem em si uma abundância sem equivalentes no mundo. E nossos/as professores/as são realmente muito bons/boas. Talvez nos falte consciência disso. Da nossa beleza e abundância.
Talvez a Nova Zelândia ganhe de nós no quesito cuidado, igualdade e não violência. Um cuidado que incentiva os atletas e garante condições para tornarem-se quem podem ser, sem julgamentos precoces ou limitações financeiras, morais ou de qualquer outra natureza.
Como mulher é impressionante andar por um lugar em que não é preciso ser a chata porque a igualdade está ali, transpirando. Piadas misóginas que são cotidianas aqui não fazem sentido por lá. E isso é realmente algo que poupa nossa energia.
Nesse cuidado com os fundadores do lugar há reverência a todos. Tudo, absolutamente tudo está escrito em Maori e Inglês, duas das línguas oficiais.
O pressuposto de que não somos donos de nada, apenas temos a posse temporária e nos cabe garantir que as gerações futuras encontrem a “casa” tão bem ou melhor do que a recebemos torna a Nova Zelândia de hoje um lugar absurdamente atento a produção de alimentos, aos cuidados com a água e com o lixo.
Essa forma de cuidado e reverência a todos está, realmente, permeando várias esferas das relações sociais. É nesse sentido que o caráter da Waka Ama não se reduz à canoa. A verdadeira tradição está nos detalhes cotidianos.
Só posso dizer que voltei muito interessada nos nossos nativos canoeiros. Eu mesma sou neta de uma nativa brasileira e de um europeu. Eu, como a maioria dos brasileiros, sou fruto dessas misturas.
Não temos uma cultura radical ou pura ou original do va’a, mas isso não é o mais importante. O importante é saber como iremos integrá-las e como vamos honrá-las e honrar a nossa própria abundância e história.
Kia Ora!