A transcendental jornada da Team Mirage com David Tepava

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David Tepava
David Tepava e seu filho, Ike, junto aos remadores da Team Mirage e convidados para os treinos. Mais do que remar, uma experiência profunda na cultura va’a. Foto: Luciano Meneghello

Emocionado, Pedrinho Weichert se aproxima e me pergunta: “Lu, como você vai conseguir colocar em um texto tudo que estamos vivendo aqui?”. Seus olhos, assim como os meus, estão marejados. Ele tem razão. Será muito difícil, talvez impossível, traduzir em palavras o que foi a experiência de acompanhar, durante uma semana, os treinamentos de David Tepava à equipe Team Mirage, mas vou tentar.

A pergunta de Pedrinho foi feita logo em seguida a uma das conversas que David tinha com a equipe após a sessão de treinamentos. Considerado o melhor técnico do mundo de canoa polinésia, Tepava é responsável por boa parte do sucesso da Shell Va’a, a melhor equipe de V6 na atualidade e detentora de todos os recordes nas principais provas de canoa polinésia que existem, como a Tahiti Nui Va’a, Fa’a’ati Moorea, Molokai Hoe, Hawaiki Nui Va’a, Vodafone Race, só para citar algumas.

David Tepava nasceu no Taiti e é filho de pescador. Ele aprendeu a remar acompanhado o pai, que pescava usando uma V1 de madeira, como são feitas as tradicionais canoas taitianas de pesca. Dessa convivência veio o aprendizado sobre as correntes marítimas, ondulações, força dos ventos, entre outros elementos naturais que, uma vez entendidos, poderiam ajudá-lo a conduzir a canoa mais eficiência. Seu pai, porém, percebeu o talento natural que David tinha para remar e o incentivou a participar de competições. Após passar por algumas equipes, ele assumiu o leme da Shell Va’a em uma época ainda distante das glórias alcançadas nos tempos atuais.

Na posição de leme, Tepava ajudou a equipe em grandes vitórias, inclusive o primeiro título da Molokai Ho’e, em 2006, em uma época em que a qualidade dos remadores taitianos era questionada pelos havaianos. Mas eles estavam enganados. Após 2006, foram oito vitórias consecutivas no Havaí, incluindo o recorde da prova, 4:30:54, alcançado em 2011.

Em 2018, porém, a Shell Va’a não estava em uma fase muito boa e após várias trocas de técnicos, David Tepava assumiu o comando da equipe. Foi uma revolução. Tepava trouxe mudanças profundas nas técnicas de remada, priorizando o “huti paari”, um estilo baseado em uma “caçada” do remo lenta e poderosa. Além disso, ele dispensou as maiores estrelas da equipe naquela época, como Kévin Ceran-Jerusalemy e Manutea Millon, para citar alguns, apostando numa geração mais jovem e menos conhecida mas que, acima de tudo, ouvia, respeitava e aplicava o que seu treinador pedia. A estreia da Shell com David no comando foi tímida: um quinto lugar na Polynesia Marathon que levou alguns críticos a precipitadamente questionarem seus métodos e sua decisão de dispensar as estrelas da equipe. Contudo, a resposta veio logo em seguida, com os títulos da Faaati Moorea, Tetiaroa Royal Race, Molokai Hoe e, por fim, uma acachapante vitória na Hawaiki Nui Vaa 2018. Desde então, a Shell Va’a acumula títulos e recordes, sendo por muitos considerada a maior equipe de canoa polinésia de todos os tempos.

Remadores da Team Mirage durante o primeiro dia de treinamento. Reaprendendo “do zero”. Foto: Luciano Meneghello

Quando fui convidado pela Passaúna Composites a acompanhar os treinamentos de David Tepava no Brasil, não sabia o que esperar. O taitiano tem fama de ser uma pessoa séria e de poucas palavras. Além disso, ele não costuma dar entrevistas e raramente aceita ministrar clínicas e treinamentos fora do Taiti. Nosso primeiro contato foi formal e protocolar. Naideron Júnior, um dos proprietários da Passaúna Composites, nos apresentou assim que Tepava e sua família chegaram à casa em que se hospedariam, em Curitiba, onde eu também ficaria hospedado. Bastante sério, David me cumprimentou e eu respondi com um “Bem-vindo” em francês. Ele perguntou se eu falava francês e respondi que somente o básico. Essa foi nossa única conversa naquele dia.

Na tarde seguinte, enquanto os membros da equipe Team Mirage ainda se acomodavam após a viagem, Naideron e sua esposa, Kamily, generosamente me convidaram para um café em sua casa, na companhia de David e sua família. Durante esse encontro, Naideron mostrou meu livro, “Raiz“, para Tepava, explicando do que se tratava. Para minha surpresa, aquele reservado taitiano se mostrou muito interessado na obra, fazendo diversas perguntas sobre o conteúdo. Ele ouvia com muita atenção e paciência minhas explicações, feitas em uma mistura de inglês e um francês tosco. David e sua esposa, Varena, que é coreógrafa e especialista em dança polinésia, também me contaram coisas muito interessantes sobre sua cultura. Ficamos um bom tempo conversando e comecei a perceber que estava diante de pessoas que valorizam o conhecimento e que tratam das conversas com respeito.

Na manhã seguinte, antes do primeiro encontro com os remadores da equipe Team Mirage, David me pergunta se eles eram bons. Respondo que sim, e brinco dizendo que são a “Shell Va’a brasileira”, ele sorri afetuosamente e responde: “good!”.

Feitas as apresentações, David pede um remo, faz um movimento de remada e pede que cada membro da Team Mirage execute aquele gesto. Em terra firme, ele então avalia e ajusta a postura de cada um dos 12 remadores brasileiros. Naideron, que acompanhava o encontro, avisa que a partir daquele momento, cada um deles deveria “esquecer” tudo que sabia sobre técnica de remada e seguir à risca o que Tepava estava pedindo. Em seguida, montamos um trimarã (composição de canoa com três cascos de OC6) e vamos para a água. No casco do meio vou eu, o filmaker Pepeu Lago, Naideron, André Leopoldino (capitão da base Tribuzana Va’a convidado por Naideron para acompanhar os treinamentos), Deisi Raquel (tradutora de francês) e outro remador do Passaúna Paddle Club.

O trimarã navega a uma velocidade de 8 minutos por hora. David observa atentamente aos remadores da Team Mirage, fazendo correções em suas posturas e pedindo mais sincronia. Percebo uma certa frustração em alguns rostos e a canoa segue como um cruzeiro enfrentando alguns solavancos.

Auxiliado pela tradutora Deisi Raquel (de costas), o mestre taitiano explica os fundamentos de suas técnicas a bordo do trimarã. Foto: Luciano Meneghello

Após essa primeira experiência, Tepava chama todos para uma conversa. Ele pergunta se estão dispostos a aprender sua técnica e fazer o mesmo treinamento que ele aplica à Shell Va’a, no que é prontamente confirmado em uníssono. Ele então sugere algumas alterações na posição dos bancos da canoa e pede que todos prestem atenção aos vogas, Max Coutinho e Carlos Chinês, e que sigam seus movimentos na mesma velocidade, priorizando a sincronia e a hora certa de aplicar a força na remada. No treino da tarde fico em terra firme observo o trimarã de longe. Outros remadores, além dos doze integrantes da Mirage, vão a bordo. Na conversa pós treino, David explica que a equipe precisa estar mais atenta à sincronia e diz que gostaria de ouvir o que eles acharam do primeiro dia de treino. Nada de muito substancial é dito, mas percebo que o taitiano está atento a cada palavra dita, que é traduzida para a língua francesa por Deisi.

Na manhã seguinte, alguns remadores da Team Mirage demostram um pouco de impaciência e combinam entre si que irão pedir à Tepava para sair para remar apenas com os membros da equipe, pois, na visão deles, remar em um trimarã com pessoas de fora do círculo da Team Mirage estava trazendo mais dificuldade para o progresso geral da equipe. Então, quando o Taitiano reúne todos para o início dos treinos, a sugestão de sair com um catamarã é feita.

David, como de hábito, ouve atentamente o que é dito e pergunta se eles acreditam que aquilo seria o melhor para a equipe. Alguns concordam, outros ficam em silêncio, até que Naideron entra na conversa para dizer que nenhuma mudança seria feita e que, além de precisar colocar algumas pessoas “de fora” na canoa para aprender com o mestre taitiano, já havia explicado que essa experiência deveria ser a partir “do zero” entre eles e que, portanto, não fazia cabimento questionar o que era sugerido pelo taitiano.

Trimarã navegando à velocidade de cruzeiro. Foto: Luciano Meneghello

Tepava novamente pergunta o que a equipe gostaria de fazer, explicando que todos deveriam concordar com as decisões. Todos concordam em manter o trimarã. David então pede que foquem em se ajudar mutuamente. “O mais forte tem que ajudar o mais fraco, só assim conseguimos melhorar como equipe”, diz. Em seguida ele fala sobre o conceito taitiano de “Taho’e”, que significa ‘união na adversidade’: “Quanto maior a dificuldade, mais unida a equipe precisa estar, isso é Taho’e, estamos na mesma canoa, somos uma equipe. Não existe melhor ou pior, cada um deve ajudar seu colega, só assim alcançaremos nosso objetivo”. Essas palavras batem forte e percebo ali uma mudança nas expressões. O trimarã vai para a água e, na volta, a energia é outra. Sentamos todos no gramado para uma roda de conversa. Por mais de uma hora, Tepava responde pacientemente a cada uma das perguntas dirigidas a ele e saímos só à noite do centro de treinamento no parque Passaúna.

No dia seguinte, os remadores da Team Mirage comentam os progressos alcançados e as dificuldades inerentes a adotar uma forma de remada diferente daquela executada ao longo de anos. Contudo, todos se mostram animados com a vivência proporcionada. Eu, de fora, percebo uma crescente sensação de respeito mútuo e camaradagem entre todos. O dia termina com uma roda de capoeira puxada por Paulo dos Reis e sua esposa, Luana Vittorazzo. David, animado, joga capoeira com os brasileiros.

Olhos atentos aos ensinamentos do mestre taitiano. Foto: Luciano Meneghello

Sábado é meu último dia no Passaúna. Desde o primeiro encontro até aquele momento é nítida para mim a mudança de postura da Team Mirage. Não falo nem de performance. Os caras são “monstros” e isso já sabemos. Falo de entrega e espírito de equipe. O mestre e seus discípulos estão mais unidos a cada dia que passa. Considero um privilégio testemunhar tudo isso. O trimarã navega cada vez melhor e David demonstra estar muito contente com os progressos alcançados. Chega então momento da conversa e Tepava pede que cada um dos doze remadores da Team Mirage diga o que está sentindo em relação aos treinamentos até aquele momento. Antes, ele explica: “É importante que todos falem e não importa que seja a mesma coisa que seu colega disse, eu quero ouvir de você o que está sentindo”, diz o mestre taitiano, acrescentando que a partir daquele momento ele percebera que o círculo de energia da canoa estava fechado. “Hoje, pela primeira vez, vocês conseguiram manter a energia fechada na canoa. Trabalhamos verdadeiramente como um time e estou muito feliz com o progresso de todos. Remar é mais do que técnica, é mais do que força. Remar é ‘feeling’, e hoje vocês alcançaram isso. Temos ainda um longo caminho, mas há coisas realmente grandes esperando por vocês”, concluiu antes de passar a palavra aos remadores.

Testemunhar esse momento foi uma das experiências mais emocionantes que vivi no mundo da va’a. Todos ali presentes se emocionaram e palavras valiosas foram ditas. Saio de lá com a sensação de que não há mais “time A” e “time B”, mas só uma equipe Team Mirage.

Nota 01 – Nos próximos dias publicaremos entrevistas exclusivas com David Tepava e com sua esposa Varena Tepava. Acompanhe nossas atualizações!

Nota 02 – David Tepava fica no Brasil até o final de janeiro e irá ministrar clínicas nas cidades de Florianópolis, Santos/ São Vicente, Ilhabela, Rio de Janeiro, Niterói e Vitória. Se você puder, não perca essa oportunidade. Para mais informações acesse @passaunacomposites.

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