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Considerado um dos maiores desafios de canoa havaiana em longa distância que existem, o Kaiwi Channel é um perigoso trecho de 41 milhas (cerca de 65 km) em mar aberto que separa as ilhas havaianas de Molokai e Oahu.
Expressão havaiana, ‘ka iwi’ significa “o osso” em português – e atravessar essas águas, remando, exige o trabalho de cada músculo e fibra do corpo humano. Renomado, reverenciado, e muitas vezes temido por sua imprevisibilidade, com condições de surfe e vento que podem desafiar as previsões meteorológicas no dia da travessia. Quem se propõe a atravessar esse canal é obrigado a usar todo seu arsenal de habilidades, treinamento e instinto, porque a única coisa certa no Kaiwi, é que tudo pode acontecer.
É por isso que remadores experientes se reúnem nesta zona desafiadora para competir anualmente nas prestigiadas corridas que ela hospeda, consideradas testes de técnica, resistência e camaradagem de equipes de todo o mundo. Pessoas que enfrentaram essas águas, em todas as suas formas, desde as tranquilas e relativamente calmas, até as aterrorizantes ondas que podem alcançar os 20 pés de altura, invariavelmente chegam às praias abrigadas de Waikiki com histórias para compartilhar.
Nos momentos em que sua equipe está em meio a essas águas turbulentas, uma canoa e um remo é tudo o que separa você do canal. Assim nasceram histórias que por décadas eram reservadas apenas para homens. Por 27 anos, as mulheres foram proibidas de competir no Canal Kaiwi. Desde a primeira competição do Molokai Hoe em 1952, somente equipes masculinas realizavam a travessia deste “coliseu do esporte”, podendo desafiar continuamente a si mesmos, aprimorar suas técnicas, aperfeiçoar sua arte e honrar suas origens havaianas, enquanto suas companheiras assistiam a tudo das arquibancadas.
Tudo isso mudou definitivamente em 15 de outubro de 1979, quando 17 equipes totalmente femininas se lançaram nas águas do canal através do porto de Hale O Lono, em Molokai, com o lançamento da Na Wahine O Ke Kai, a primeira corrida de longa distância da história no Kaiwi Channel dedicada a remadoras de canoa havaiana. Mas essa conquista foi fruto de um trabalho de coragem e persistência que teve seu início décadas antes.
O ano era 1954 quando três remadoras do Waikiki Surf Club tiveram a ousada ideia de pegar carona em um barco de apoio de um estranho indo para Molokai, apenas algumas horas antes da largada da terceira edição anual da Molokai Hoe. Foi uma tentativa desesperada de testemunhar a corrida desde a sua linha de largada, já que, naquela época, as mulheres não tinham permissão para isso.
Hannie Anderson, La Abbey e Vi Makua estavam caminhando pelas praias de Waikiki, descalças, com shorts Levi’s cortados e sem um único centavo no bolso naquela manhã, quando encontraram alguém disposto a levá-las até a costa de Molokai. Sua missão? Aprender o máximo possível sobre a corrida dos homens na esperança de lançar as bases para sua própria versão feminina. “Nós éramos tão loucas“, diz Anderson, agora com 82 anos, lembrando sua “operação secreta” com um sorriso travesso. Dois anos após o primeiro Molokai Hoe, em 1952, Anderson e o restante da equipe sênior feminina abordaram seu clube com uma proposta considerada altamente radical para a época: elas queriam fazer o que os homens estavam fazendo na canoa.
Aos 20 anos, Anderson era uma das principais remadoras femininas do Havaí. Se existe um biótipo perfeito para um remador, ela se enquadrava nele: Esbelta, forte e com ombros largos. Suas habilidades, no entanto, assim como as de suas companheiras de equipe, eram limitadas às regatas de curta distância – sprints intensos de uma milha em águas rasas – e sempre que sugeriam participar da corrida de Molokai para Oahu, eram rejeitadas.
Seria um percurso “muito desafiador e perigoso para equipes femininas”, diziam-lhes. Afinal, elas eram “apenas” mulheres. “Tínhamos a Guarda Costeira e nossos próprios treinadores contra nós“, diz Anderson. “Pedimos a tantas pessoas sobre como conseguir permissões, conseguir canoas – apenas nos deixar ir, mas todos diziam ‘Não’.” Com essa palavra ecoando em seus ouvidos, elas sabiam que, para chegar perto do Kaiwi, precisariam tomar as rédeas do próprio destino, daí sua viagem secreta para a corrida dos homens, para verem aquilo por si mesmas.
Ao se aproximarem da Baía de Kawakiu, no lado norte de Molokai, onde as canoas dos homens estavam alinhadas para a corrida, as ondas quebravam com força. O capitão virou-se para elas e disse: “Não podemos chegar lá“.
Mas antes que a decepção pudesse tomar conta de todas, ninguém menos do que Duke Kahanamoku surgiu em sua pequena embarcação, lembra Anderson. O “Pai do surfe moderno” era também conhecido por incentivar a participação feminina em esportes havaianos, como faziam seus antepassados. Elas gritaram para ele pedindo uma carona até a praia e foram prontamente atendidas pelo legend.
As condições de mar daquela manhã estavam realmente desafiadoras, mesmo para alguém experiente como Duke, que conduziu as três mulheres o mais próximo possível da praia antes de concluir que, se elas realmente quisessem chegar à terra firme, teriam que pular na água e nadar alguns metros. “Bem, já havíamos vindo de Oahu até aqui, não íamos desistir”, Anderson dá de ombros, explicando sua decisão de agradecer à Kahanamoku pela carona e se jogar na água.
Anderson, Abbey e Makua começaram a nadar em direção à linha de largada quando um barco oficial as interceptou. Seu coração estava na boca da garganta, recorda. Eles seriam presas? Mas, prontamente responderam que estavam ali para verem seus maridos. Anderson diz que o oficial as olhou fixamente, mas não perguntou quem eram seus maridos. Ele também não lhes pediu para voltar ao barco de Kahanamoku e as deixou passar. Depois de observar os preparativos até a largada, elas conseguiram carona de volta em outro barco de apoio, deslizando pelas ondas agitadas até chegarem a Waikiki, 13 horas depois. Nos anos que se seguiram, a ideia de equipes femininas participando da travessia de Molokai permaneceu apenas isso – uma ideia. Não havia permissão, apoio, nem mesmo equipamento adequado para tentar. “As ondas fariam sua canoa em pedaços”, diziam a elas, ”E se algo acontecesse, quem iria resgatá-las?” Essas perguntas continuariam a ser indagadas por longos anos.
“Foi um sonho que nunca nos abandonou”, recorda Anderson. Muitas remadoras paravam de remar para ter filhos e constituir família, mas ainda mantinham a crença de que isso poderia ser feito. Se não por elas, então por outra equipe.
“Sempre achamos que isso iria acontecer”, diz Anderson. “À medida que envelhecíamos, as meninas mais novas ficavam interessadas em fazer a travessia de Molokai para Oahu por conta própria. Nós apenas tivemos que esperar que a próxima geração surgisse.”
Vinte e um anos depois esse sonho finalmente estava prestes a ser realizado. Donna Coelho-Wolfe, uma jovem ousada e inteligente remadora de 21 anos do Kailua Canoe Club, se recusava a aceitar os padrões machistas ainda vigentes na cultura da canoa no Havaí. Naquele ano de 1975, não havia um dia sequer em que Donna não era vista com um remo em uma mão e uma pilha de panfletos caseiros na outra, impressos com um chamado a todas as ‘wahines’ que quisessem competir no Canal Kaiwi. Durante todo o verão, ela os entregaria aos treinadores de clubes de canoa masculinos em Oahu, e quando eles se recusavam a repassá-los para suas equipes femininas, ela fazia isso pessoalmente, na praia, para garantir que soubessem: “Encontrem-se no Ala Moana Hotel. Estamos formando uma liga própria”.
Os anos 1970 foram marcantes para as mulheres que remavam de canoa havaiana, pois os paradigmas machistas estavam finamente começando a ser quebrados. A primeira corrida de longa distância para mulheres no mundo, um percurso de 10 milhas da Baía de Maunalua, em Hawaii Kai até Waikiki, ocorreu no final de 1974. Algumas outras corridas de longa distância, de 6 a 18 milhas, foram realizadas logo depois. Finalmente, as mulheres estavam passando mais tempo na água, ainda que se tratassem de percursos costeiros. Remar em águas abertas e atravessar o Kaiwi Channel permanecia um tabu.
A partir das reuniões no Ala Moana Hotel, um grupo de remadoras foi se formando, intrigadas pelos panfletos que Wolfe vinha distribuindo. Entre elas, estava George Downing, surfista de ondas grandes de Makaha e um dos water man mais respeitados da época. Cumprindo uma promessa que havia feito a Wolfe, ele participou da reunião para ajudar qualquer pessoa interessada na ideia de atravessar o Kaiwi. Naquela noite, ao anoitecer em Honolulu, Downing compartilhou tudo o que não apenas um homem, ou uma mulher, mas um remador precisaria saber sobre o canal. Ao tratá-las como iguais, ele teve um papel fundamental, diz Wolfe, em dar a elas a primeira imagem séria do Kaiwi. Naquela noite, a primeira sessão de treinamento não oficial para mulheres sobre como enfrentar a corrida suprema do mundo das wa’as foi realizada. A notícia se espalhou, bem como a certeza de que ninguém mais seria capaz de frear aquele movimento.
Então que Wolfe foi informada de que a equipe de mulheres do Healani Canoe Club, que havia vencido todas as regatas da temporada, iria fazer a travessia. Mas, havia um porém: Babe Bell, o treinador da Healani, era um dos críticos mais ferozes de Wolfe. O que teria mudado? Especula-se que Bell tenha mudado de ideia depois de ver o desempenho excepcional de sua equipe feminina durante as regatas. Com essa reviravolta, o conhecido espírito competitivo do treinador teria falado mais alto.
Mas não era hora para ressentimentos. No mesmo momento, Wolfe reuniu remadoras de três clubes de canoagem diferentes – Kailua, Lanikai e Outrigger – para formar outra equipe de mulheres com o único propósito de atravessar o Kaiwi ao lado do Healani. Elas se nomearam “Onipaa”, que, em havaiano, significa “firme” e é o lema de uma das figuras feministas mais proeminentes da história do Havaí, a Rainha Liliuokalani. Jeff Chee, um remador do Waikiki Surf Club, se tornou o treinador principal delas.
O maior desfio, recorda Rosie Lum, agora com 72 anos, uma das integrantes originais do Onipaa, foi acertar as trocas entre as remadoras no revezamento dos bancos. As substituições meio do Kaiwi Channel precisavam ser perfeitas para que ninguém se perdesse no meio daquelas águas agitadas. É bom lembrar que nos anos 1970 os barcos de apoio não era nem velozes e nem ágeis como são hoje e não existia GPS.
Os treinos seguiram sob olhares desconfiados de alguns remadores e apoio de outros. Progressivamente, as equipes foram fazendo percursos cada vez mais longos e distantes da costa. Com a preparação intensiva e motivação, as equipes desafiaram o que se acreditava impossível para remadoras femininas. Então, uma data foi finalmente determinada para a travessia: a manhã do primeiro domingo de outubro de 1975.
Na noite anterior à travessia de 1975, Onipaa e Healani se uniram em Molokai pela primeira vez. Antes de sua chegada, as equipes pediram permissão à comunidade do Porto de Hale O Lono se poderiam acampar lá, ao que os moradores responderam com comida típica e música para elas. Estavam animados pelo que essas mulheres estavam prestes a fazer.
As estrelas brilhavam sobre as remadoras da Onipaa e Healani com um brilho intenso e acolhedor de uma forma que elas nunca esqueceriam. Olhando para a vastidão cintilante da noite, elas refletiram não apenas com o que todas haviam alcançado, mas estavam prestes a alcançar.
Nas primeiras luzes da manhã, as duas canoas de madeira koa se lançaram ao mar de Molokai. Healani, vestida com seu clássico traje azul-marinho, fundia-se com a água azul do canal. Onipaa deslizava ao lado delas, usando regatas de malha, feitas em casa e serigrafadas no quintal de sua colega Luana Froiseth dois dias antes. A tinta gradiente em arco-íris, representando as cores de cada um dos seus clubes de canoa, ainda estava fresca em suas costas enquanto ambas as OC6 avançavam como uma única equipe.
Correndo ao lado delas estavam os barcos de apoio com seus treinadores a bordo e o resto das companheiras de equipe, que se revezariam, de seis em seis remadoras, ao longo da jornada. A travessia estava indo bem. Por quase 45 minutos de remada, Onipaa e Healani estavam lado a lado. “Ambas as equipes, em termos de remadoras, tinham as melhores mulheres em todas as ilhas“, diz Anderson. “Elas estavam fazendo algo que nenhuma mulher no mundo havia tentado. Elas eram as pioneiras.”
Quando as equipes chegaram em Laau Point, o ponto mais a oeste de Molokai e a última porção de terra que alguém veria até chegar a Oahu, as equipes se separaram. Onipaa continuou o curso para o norte, e Healani, usando uma estratégia de Bell, fez uma ruptura para uma rota ao sul. Com as equipes separadas, o momento que estava na mente de todos nas últimas semanas estava se aproximando rapidamente: a primeira troca de remadoras em mar aberto.
“Estávamos fazendo coisas que nunca havíamos feito antes em nossas vidas. Foi emocionante! Depois que superamos a incerteza, estávamos além. Estávamos remando“, conta Ane.
Enquanto remavam, um canal antes desconhecido lhes retribuiria de maneiras que nenhuma das equipes poderia ter esperado, criando novas conexões e provocando despertares que não teriam sidos descobertos de outra forma.
Quando Oahu entrou no campo de visão da Onipaa, um impulso extra de orgulho as impulsionou em direção ao seu destino. Elas remavam há mais de sete horas, mas passaram a remar cada vez mais forte. A Praia Duke Kahanamoku, em Waikiki, finalmente estava à vista e elas estavam se aproximando do fim.
Healani, que havia chegado ao Ala Wai Yacht Harbor cerca de 15 minutos antes, já estava lá para ajudá-los a comemorar. A estratégia de Bell sobre o canal naquela manhã provou ser vitoriosa, apostando no surfe em meio às ondas, deslizando assim ao longo da rota meridional para um tempo final de 7 horas, 19 minutos e 20 segundos. Nos momentos finais da travessia, todos na canoa, nos barcos de escolta e no porto irromperam com gritos e aplausos. Os espectadores mergulharam na água, jogando-a para cima com parabéns e alegria. Onipaa remou com toda a sua força.
No Hotel Ilikai, a comemoração continuou. Os ombros das remadoras, cansados da travessia, estavam sobrecarregados com os colares lei entregues por amigos e familiares. A equipe do hotel tirou fotos delas como se fossem celebridades nacionais. Anderson surpreendeu a todas com troféus. Ambas as equipes haviam vencido naquele dia.
A travessia, no entanto, não foi aceita como uma “competição oficial” pelos clubes havaianos, ainda dominados por homens, sendo considerada uma “travessia festiva”. No entanto, ao provar que equipes femininas poderiam realizar o canal dos ossos no mesmo tempo que equipes masculinas, elas conseguiram fechar a lacuna de gênero em seu esporte. Mais do que “pedir autorização” para competir em uma prova de travessia entre Molokai e Oahu, a projeção que aquele feito lhes deu, foi forte o suficiente para conquistar prestigio e apoio para a realização de uma prova somente entre mulheres naquele canal.
No final de 1977, dois eventos de corrida de longa distância femininos seriam realizados. Um na Califórnia (a regata de Catalina Channel, uma travessia de 26 milhas entre a Ilha de Santa Catalina e a costa sul da Califórnia), e o Queen Lili’uokalani Long Distance Outrigger Canoe Races, em Honolulu (então a corrida mais longa do gênero no Havaí).
Assim, as mulheres começaram a se tornar cada vez mais envolvidas em seus próprios eventos. As regras, tanto governamentais, quanto sociais, estavam começando a mudar. Até que, finalmente, em 1979, com o apoio de amigos e família, 102 remadoras havaianas e da costa oeste dos Estados Unidos se tornaram as primeiras mulheres a competir oficialmente em uma prova de travessia entre Molokai e Oahu, pelas águas turbulentas do Kaiwi Channel, a Na Wahine O Ke Kai.
A competição foi um sucesso, com a equipe do Waikiki Surf Club liderando o caminho, completando a travessia em 6 horas e 55 minutos. Desde então, as mulheres têm feito sua marca no canal, com tempos sendo constantemente reduzidos, padrões de treinamento sendo elevados e uma nova era de remadoras estabelecendo seu lugar em uma terra onde antes não havia espaço para elas. O Kaiwi é também o osso de mulheres.
*O artigo que você acabou de ler foi basedo na reportagem “The Remarkable Story of the First Women to Paddle the Kaiwi Channel”, publicada originalmente na Hawaii Magazine, em 2017, somado a pesquisas que fiz durante minha última viagem ao Havaí.