Homem remará de caiaque da África do Sul ao Brasil
Richard Kohler, 52 anos, irá remar a bordo de um caiaque transoceânico da Cidade do Cabo, África do Sul, ... leia mais
A REGIÃO – O Canal de Bertioga faz parte de uma imensa bacia hidrográfica formada por água salobra, que é abastecida pelo mar e pelos rios de água doce que banham a região, entre eles o Rio Itapanhaú. Esse canal possui duas desembocaduras para o mar, uma em Santos e outra em Bertioga e segue serpenteando por cerca de 25km entre manguezais, ao longo de largos bem extensos, com largura média entre 200 e 700m, fazendo também uma ligação com o maior porto da América Latina, o Porto de Santos.
O Rio Itapanhaú, principal afluente do Canal de Bertioga, é considerado o rio mais extenso do litoral paulista e percorre boa parte de seu caminho dentro da unidade de conservação do Parque Estadual Restinga de Bertioga, com inúmeros ecossistemas como manguezais, restingas e florestas de Mata Atlântica, além de grande biodiversidade animal.
Toda essa região sofre há muito tempo grande pressão ambiental decorrente da dinâmica de ocupação humana e contaminação de seu complexo hídrico pelo Pólo Industrial de Cubatão, pelo Complexo Portuário de Santos e pelo turismo cada vez mais crescente, degradando tanto a qualidade das águas quanto as áreas de manguezal e ecossistemas envolvidos.
O PROJETO – Este projeto de SUP Race Endurance teve como objetivo anexar duas travessias de stand up paddle realizadas pelo grupo SUP Extremo, em algumas oportunidades, como a descida do Rio Itapanhaú até a sua foz em Bertioga e a travessia entre as cidades de Santos e Bertioga, passando pelo Canal de Bertioga, ambas com extensões próximas de 33km.
Com a junção destes dois trechos, descemos desde as partes mais altas navegáveis do Rio Itapanhaú, passando pelo Canal de Bertioga em direção à Base Aérea de Santos, Porto de Santos até a chegada em Santos, no estilo non-stop (de uma única vez, com pequenas paradas para alimentação e hidratação, em cima da prancha), sem equipe de apoio de água (autossuficiente), numa travessia inédita de 62km.
A equipe foi formada por Caio Coutinho, Ulisses Bicudo e Wilian Mamedio e a organização iniciou-se cerca de 3 meses antes da data marcada para a travessia. Nosso treinamento foi bastante rigoroso, específicos de resistência e força. Treinos de água e de academia foram detalhadamente realizados. Foi necessária uma equipe de apoio de terra, composta por Salvador Bicudo e Cris Bicudo, para levar nossas pranchas e equipamentos até o início da travessia. Essa equipe também ficou disponível durante todo o dia no caso de alguma intercorrência de nossa parte.
ESTRATÉGIAS ADOTADAS E MONITORAMENTO – O requisito básico da proposta era finalizar em tempo hábil para evitar atravessar o canal do Porto de Santos de noite, devido às questões de segurança envolvidas. Tínhamos cerca de 12 horas de luz do dia e foi decidido chegar de madrugada na entrada do rio.
Para atravessar estes 62 quilómetros tivemos que lidar com todas as dificuldades inerentes aos ambientes percorridos, como as águas doces e pesadas do rio Itapanhaú, com troncos e restrições em sua parte proximal, as águas salobras sujeitas a muita variação de maré e ondulações de embarcações nos canais de Bertioga e Porto de Santos e ondulações do mar na chegada em Santos. Além dos desgastes físicos-mentais, calor e muito vento.
Como não tínhamos uma equipe de apoio em água, os equipamentos como bags de hidratação (cerca de 6 litros por pessoa), alimentação e suplementação (kits que foram consumidos a cada 10km), lanternas, câmeras, entre outros, foram anexados por fitas e elásticos em nossa própria prancha.
Como plano de segurança (Plano B) foi adotada uma estratégia de chegar até o meio-dia aos 30km da travessia (praticamente metade do caminho), onde, se fosse necessário, teríamos uma rota de escape mais rápida e segura em direção ao mar, via canal até o Forte de São João em Bertioga. Outros pontos de apoio foram as comunidades ribeirinhas e bairros de Bertioga, podendo ser acessadas durante a descida do rio, e os ancoradouros e marinas situados nas margens do Canal de Bertioga, além de uma comunidade próxima ao Monte Cabrão e a Base Aérea de Santos. Monitoramos nossas condições a cada 10km remados.
A carta de maré era favorável e fomos beneficiados pelo horário de maior alta ao meio-dia, nos ajudando na transição entre a saída do Rio Itapanhaú e a entrada no Canal de Bertioga. Na parte final da travessia a perspectiva também foi boa, com a maré vazante nos auxiliando a sair do canal do Porto de Santos em direção ao mar. O monitoramento que fizemos das condições ambientais durante a semana se mostrou dentro do previsto, com muito calor, nebulosidade e vento durante todo o dia.
A TRAVESSIA – A região mais alta navegável do Rio Itapanhaú foi acessada a partir da rodovia Mogi-Bertioga e depois através de uma trilha de cerca de 15min por entre a vegetação nativa de Mata Atlântica até o barranco do rio. Acordamos às 2h00 da madrugada de 9 de setembro e viajamos com as pranchas e equipamentos até o local. Ulisses, Wilian, Cris e Salvador vieram de Mogi e eu subi desde Santos.
Como a ideia era sair o mais cedo possível, o grupo se encontrou na entrada da trilha por volta das 4h00. Estava ainda escuro, mas percorremos a trilha com toda bagagem e pranchas até ao rio. Organizamos todos os equipamentos a serem amarrados em cima das pranchas, e descemos o barranco na margem esquerda do rio, iniciando a travessia logo que clareou o dia.
O rio, como de costume, apresentou-se nestes primeiros quilômetros muito estreito e raso, com muitos troncos de árvores e galhos atravessados, dificultando nosso deslocamento. Seguiu serpenteando por entre grandes árvores e margens arenosas. Muitos pássaros e águas calmas cor de Coca-Cola nessa hora da manhã, além de uma brisa muito fresca. Aos 10km encontramos já vestígios de civilização, com casas de alvenaria, barquinhos e alguns pescadores. Seguimos o caminho que o rio levava, passando por plantas aquáticas com seu verde intenso nas bordas das prainhas, às vezes roçando debaixo de nossas pranchas.
Era nítida a poluição das águas do rio nas imediações dos bairros atravessados. Como já tínhamos feito essa descida dois anos atrás, notamos uma grande degradação, tanto da mata ciliar quanto da qualidade das águas, fato esse que nos entristeceu, visto que estávamos nas imediações do Parque Estadual da Restinga de Bertioga. Aos 20km o rio diminuiu a frequência de seus meandros, se tornando mais largo e aparentemente, até pelo volume maior de água, também mais limpo, fato constatado por nós, após o primeiro mergulho para dissipar o calor.
À medida que íamos avançando acompanhamos visualmente a silhueta dos grandes paredões de rocha da Serra do Mar, que era um espetáculo à parte, com o rio cada vez mais largo e sua vegetação de mangue. Passamos a ponte da BR-101 convivendo cada vez mais com a presença de lanchas e jet-skis. Aos 30km, próximos ao Canal de Bertioga, demos mais uma parada para suplementação. Eram 11h30 e estava muito quente, sol e vento frontal, além do balanço das águas provenientes das diversas embarcações e ondulações das correntes da subida da maré.
Não consegui me alimentar direito, estava um pouco zonzo e comentei com o Ulisses. Podia ser o calor e ele sugeriu um pulo para refrescar o corpo. A proximidade do ponto de desistência do Plano B tinha me afetado psicologicamente. A mente tem suas artimanhas, e quando você dá uma brecha ela consegue te afetar fisicamente. Estava muito cansado e bem indisposto e se o Ulisses ou o Wilian estivessem com as mesmas sensações ou se comentassem algo sobre abortar a travessia, eu teria cedido. Segui o conselho do Ulisses e dei um mergulho e tentei me alimentar.
Deixamos o Rio Itapanhaú para trás e entramos no Canal de Bertioga, sentido Santos. Nos próximos quilômetros eu consegui recuperar minha estabilidade emocional e a física veio junto, nem parecia que eu estava prestes a desistir cerca de meia hora atrás. Fiquei analisando esse comportamento durante boa parte da travessia. As ondulações das lanchas e os ventos frontais continuavam, mas o ritmo estava melhor, com a corrente de maré nos ajudando a avançar.
Passamos por diversas marinas e ancoradouros e paramos aos 40km nas proximidades do Largo do Candinho, na parte central do Canal de Bertioga. O Largo do Candinho é a porção mais larga do canal, resultado do encontro das correntes de maré provenientes das desembocaduras norte e sul, formando o que chamavam de “tombo das águas”.
Saindo do Candinho pegamos entre o km 42 e 45 um vento frontal muito forte, fazendo com que as condições ficassem muito difíceis e complicadas. Não tínhamos onde nos abrigar, e tivemos que encarar as ondulações contrárias. O tempo já estava dando caras que iria mudar e nesse momento senti a apreensão retornar novamente, pois faltavam cerca de 20km. Entre a resiliência e a força de vontade para encarar aquelas condições restava a opção de pedir alguma intervenção divina para amenizar aquelas rajadas.
Seguimos valentes, e vez ou outra eu olhava para trás e via o vento e as ondulações castigando o Ulisses e o Willian. Seguia firme, cada vez mais cansado. O canal fazia uma curva mais adiante e eu torcia para que aquele vento pudesse também nos ser útil na virada do canal. De repente as rajadas foram diminuindo e voltou a soprar normalmente. Aguardei eles passarem por mim e conversamos brevemente sobre esse upwind sinistro.
Em condições de águas mais calmas, longe de marinas e lanchas passamos debaixo da ponte que liga a rodovia entre Guarujá e a parte continental de Santos. Foi um alívio quando chegamos aos 50km quase em frente da Base Aérea de Santos, com o tempo escurecendo devido à pesadas nuvens que se aproximavam. Eram 17h00 e faltava ainda atravessar as águas traiçoeiras do Porto de Santos. Demos a última parada para suplementação antes de entrar no canal, com a maré a nosso favor e ondulação aparentemente calma.
Decidimos atravessar o canal e ir margeando seu lado direito, o lado de Santos. A remada no canal do Porto de Santos é diferente de tudo pois existe uma grande tensão ali, devido a passagem constante de embarcações de todos os portes, navios com cargas imensas gerando grandes turbulências e ondulações. Passamos por dezenas de navios cargueiros estacionados nos ancoradouros, carregando e desembarcando containers, em um barulho intenso. A sensação é de remar dentro de uma máquina de lavar roupas, com ondulações imprevisíveis, correntes de retorno cruzadas, redemoinhos e backwashes. Sinistro.
No meio do percurso o vento entrou forte novamente, com rajadas e chuva leve, e o que era tenso passou a ficar mais complicado devido à instabilidade de remar naquelas condições. O foco e o comprometimento com a segurança eram totais, com a atenção mais que redobrada nos detalhes. Passamos com cuidado pelas balsas que fazem o trajeto Santos-Guarujá e avistamos o Forte da Barra, indicativo que o mar estava próximo. Alívio. Saímos pelo canal contornando a Ponta da Praia e aportamos às 17h40 na pequena praia em frente ao Aquário Municipal de Santos aos 62km e 11h40 de remada, exaustos e felizes.
AGRADECIMENTOS E CONSIDERAÇÕES – Nada foi fácil, não dá para saber o que mais pesa, se é a quilometragem rodada, ou a dezena de horas em cima da prancha lutando contra o tempo, correntes, ventos e aspectos físicos-mentais. Já é sabido que a parte mental tem um peso muito grande em desafios com dificuldades extremas e de longa duração. Todos sabíamos disso, e pessoalmente, isso já estava claro para mim pela vivência em travessias anteriores, onde a parte mental foi muito bem testada, mas dessa vez ficou novamente explícito a importância do controle mental em nossa vida – mais uma grande lição e um aprendizado para colocar em prática no dia a dia.
Muito grato e contente pelo grupo que se formou para esse desafio, Ulisses companheiro de outras aventuras SUP Extremo e o Wilian, já experiente também, mas que fez sua primeira travessia NON-STOP com a gente. Obrigado pelo comprometimento que tiveram com o projeto, pelo companheirismo e meus parabéns pelos momentos de superação durante a travessia. Grato por nossa equipe de apoio de terra, apoiadores que fizeram toda a diferença na logística de ir e vir até o início da travessia, de monitorar nosso deslocamento e no apoio durante nossa chegada em Santos. Agradecimentos especiais para Cris, Salvador e Caio.
Às nossas famílias que estão sempre torcendo e prontos para nos apoiar em nossas aventuras, desde as etapas de treinamento, até a organização e auxílio no planejamento para que tudo saia conforme esperado. Vocês são nosso porto seguro e nosso principal motivo de retornar para casa.
Agradecimentos ao Luciano Meneghello, editor-chefe do Aloha Spirit Midia, o maior portal de esportes aquáticos da América Latina, que não poupa esforços na divulgação do conteúdo SUP Extremo. Nossa gratidão. Aloha.
Caio Coutinho, setembro de 2023.