A história da competição que colocou o Ceará no mapa do downwind mundial

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A primeira edição da W2 Downwind foi fruto da união de muitos personagens cujas ações pioneiras revelaram ao mundo o potencial cearense para a modalidade. Foto: Arquivo W2

O ano era 2010 e o surfski surgia no Brasil como uma novidade capaz de proporcionar uma projeção na água nunca antes imaginada, atraindo a atenção de remadores que buscavam alternativas mais desafiadoras para além das competições da época. “A gente estava cansado de fazer prova contornando boias e passamos a buscar alternativas”, conta o santista Fabio Paiva, pioneiro da va’a brasileira que havia se interessado pelas provas de aventura, que incluíam a canoagem entre as modalidades.

Nessas provas, Paiva estreitou relações com um grupo de canoístas igualmente interessados e buscar novos desafios através da canoagem. Assim, o santista se juntou a Carmen Lucia, Eduardo Coelho e Marcelo Macuco para dar início a um projeto de remadas mais longas e desafiadoras. Uma das primeiras travessias foi Santos x Laje de Santos, com aproximadamente 100 km e incluiu, além da Laje, a circunavegação do parcel de Calhaus. A experiência foi bem-sucedida e deixou o grupo instigado em realizar travessias ainda mais desafiadoras.

Foi então que Eduardo Coelho sugeriu uma expedição longa de downwind. “Eu já fazia downwind em Santos desde o final dos anos 1980. Quando entrava o vendo sudoeste. Lembro que eu e o Fabio Mota ficávamos olhando a previsão e, no dia indicado, remávamos lá pra fora da baía, calculando a hora que o vento ia entrar, para voltar no downwind, só que era uma condição bem específica e não muito constante, ”, recorda Fabio Paiva.

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Primórdios do downwind Brasileiro: mapa da costa norte nordestina usado por Fabio Paiva, Carmen Lucia, Eduardo Coelho e Marcelo Macuco para estudar as possíveis melhores rotas da região. Foto: Fabio Paiva

O grupo então passou a estudar o contorno da costa brasileira a procura de regiões potencialmente boas para o downwind. Não demorou muito para chegaram à conclusão de que a costa brasileira, no trajeto que vai do Ceará ao Maranhão, tinha um relevo ideal para se aproveitar a constância dos ventos alísios, que sopram paralelos à costa.

O grupo começou a estudar a costa norte nordestina já decidido a fazer esse downwind. Para além da experiência de todos ali, foram necessários meses de planejamento e preparação, pois os riscos eram muitos. O trajeto escolhido foi Fortaleza x São Luiz do Maranhão, totalizando 800km.

“Na época a gente estava fazendo a transição do oceânico para o surfski, então, decidimos que iriámos em um caiaque oceânico duplo, eu e o Coelho, levando os mantimentos, e o Fabio Paiva e o Marcelo Macuco foram de surfski”, conta Carmen Lucia.

Assim, em meados de 2011, Fabio Paiva, Marcelo Macuco (ambos de surfski), Carmen Lucia e Eduardo Coelho (de caiaque duplo) percorreram os 800 km que separam Fortaleza de São Luiz do Maranhão em 11 dias. “Foi uma experiência transformadora e também reveladora, pela confirmação da qualidade de downwind que tínhamos no Brasil”, recorda Carmen (Nota: essa expedição histórica será contada em detalhes, em breve, aqui no site).

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Os pioneiros do downwind brasileiro na expedição que mudou a história do esporte, da esq. para dir.: Eduardo Coelho, Carmen Lucia, Fabio Paiva e Marcelo Macuco. Foto: Arquivo pessoal

Quando retornaram, a notícia rapidamente se espalhou entre os remadores e a “descoberta” animou muitos a fazerem o mesmo trajeto. O problema, aponta Paiva, é que naquela época poucas pessoas tinham a experiência necessária para fazer aquele tipo de travessia. “Seria necessário um aparato de segurança para garantir uma boa experiência, porque naquelas condições é muito fácil a pessoa com um pouco menos de experiência pegar uma rota errada e desaparecer no mar”. O remador santista conta que então sugeriu a João Castro, que vinha se destacando com a realização de eventos de remada, como o Aloha Spirit, a organizar um evento naquela região, com vagas limitadas e um aparato de segurança. Seria uma forma de garantir a um número maior de pessoas desfrutarem daquelas condições clássicas dentro de um risco controlado.

O ano de 2011 também foi marcado pela explosão do stand up paddle. A nova modalidade de remada tornou-se uma verdadeira febre nas praias brasileiras e eventos realizados por João foram “invadidos” por adeptos do SUP.

Foi um impacto muito forte, de um ano para o outro, o stand up paddle se tornou a modalidade mais popular do Aloha e muita gente comentava comigo sobre as provas do Havaí. Em especial, as provas de travessia. Quando o Fabio Paiva me contou sobre a travessia que haviam feito, na hora imaginei que para viabilizar um evento desses, seria importante incluir o SUP, por conta do número de praticantes”, revela João Castro, que passou os meses seguintes trabalhando para colocar em prática a ideia.

Naquele mesmo ano, um grupo de brasileiros formado por Alessandro Matero, Claudio Chain, João Renato, Luiz Guida “Animal”, Bob Araujo, Gustavo Ratones, Fabiano Faria e Antonio Chaer viajou ao Havaí para participar da Molokai 2 Oahu. Foi a primeira participação em massa de remadores do Brasil na competição que, mesmo não sendo um ‘downwind clássico’, é considerada um ícone da modalidade. Juntaram-se a eles os brasileiros residentes no Havaí Livio Menelau, Masao Fukayama e Andrea Moller. A participação foi histórica e teve resultados expressivos: Andrea e Livio ficaram entre os Top 4 da classificação geral e Animal foi o nono colocado. Uma reportagem publicada sobre a competição na recém lançada revista Fluir Standup logo em seguida ajudou a popularizar ainda mais a modalidade.

“Depois da enorme repercussão que teve essa viagem, tive a certeza de que, se fizesse um evento assim aqui no Brasil, seria um sucesso”, revela João Castro. O desafio agora, tendo as informações que o Fabio Paiva havia lhe passado, era desenhar um percurso seguro, divertido e logisticamente viável.

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A primeira participação expressiva de brasileiros na Molokai 2 Oahu foi tema de reportagem na revista Fluir Standup e despertou o interesse na modalidade no país. Foto: Rebecca Shute Villegas

Foi então que outro personagem, o cearense Marcelino Mota, entrou na história. Proprietário de uma confecção chamada “Outburst”, que investia no recém-criado circuito brasileiro de SUP e em eventos do segmento, como o próprio Aloha, Marcelino procurou João com a ideia de realizar um evento de downwind no Ceará. “Foi uma daquelas coincidências que acontecem e que parecem meio mágicas, pois ele me procurou bem no momento em que eu pensava em como viabilizar o evento lá”, revela João Castro.

Marcelino sugeriu uma competição longa com cerca de 100km, partindo de Fortaleza rumo ao norte do estado. Em termos logísticos, seria importante estar perto da capital do estado. João então pensou em uma distância menor, com 30 km aproximadamente, um trajeto que garantira diversão e uma logística segura. O próximo passo foi buscar apoio da associação cearense de SUP, a ASUP-CE, na época presidida por Walter Cortez, que desde o início se mostrou muito solícito, sendo um grande parceiro na empreitada.

João conta então que procurou o paulista radicado no Ceará, Alex Araujo, que havia iniciado um projeto de mapeamento o litoral do estado em busca dos melhores pontos de downwind, só que voltado para o stand up paddle. “Com as informações do Alex, somadas às do Fabio Paiva, conseguimos desenhar percursos que atendessem a diferentes modalidades de remada. Tínhamos a prova desenhada e o apoio da associação estadual. Agora era correr atrás de patrocínio para viabilizar o evento”, relembra João Castro. E aí, mais uma vez, os astros se alinharam perfeitamente quando o empresário e remador Carlo Caruso, que representava a SIC Maui, maior fabricante de pranchas de downiwnd do mundo, revelou que tinha planos para trazer Andrea Moller e Livio Menelau ao Brasil para promover a marca. Após algumas conversas, Caruso aceitou ser patrocinador máster da primeira competição de downwind da história do Brasil, batizada de “W2”, sigla que representa as duas forças da natureza indispensáveis à prática da modalidade: vento (wind) e onda (wave).

W2: a competição que colocou o Ceará no mapa do downwind mundial

João recorda que se hoje parece simples realizar um evento de downwind, naquele ano de 2012 foi uma verdadeira epopeia: “Ninguém sabia se ia dar certo, havia muito receio em relação à parte logística, com a segurança, mas lembro que fizemos muitas reuniões, sempre com o apoio irrestrito do Walter Cortez e do pessoal da ASUP-CE, que foi muito importante para a realização do evento”.

25 atletas distribuídos nas modalidades surfski, va’a, paddleboard e SUP, entre eles Lívio Menelau e Andre Moller, que vieram diretamente do Havaí para competir em águas brasileiras, marcaram presença na W2. A raia entre as praias de Mucuripe e Cumbuco com 30 Km de distância foi classificada por estes dois experientes atletas internacionais como “classe A”, ou seja, nada devendo às melhores provas no mundo.

Lembro com muito carinho dessa W2, foi a primeira vez que participei de um evento de downwind no Brasil e foi até hoje a melhor prova dessa modalidade que já fiz fora do Havaí”, recorda Livio Menelau.

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Momento histórico: Roda de energia na abertura da primeira competição de downwind do Brasil. Foto: Arquivo W2

A presença de Livio e Andrea na W2 “chancelou” internacionalmente a qualidade do downwind cearense. A notícia da prova se espalhou mundo afora e no ano seguinte a procura foi maior. O evento continuaria a ser realizado por mais quatro anos, incluindo duas etapas na cidade de Búzios (RJ), também famosa pela qualidade dos ventos. Mas a constância dos alísios nordestinos levou João Castro a levar o evento de volta para Fortaleza. “Fizemos mais dois anos em Fortaleza, em 2017 e 2018, e mudamos o formato para uma competição em três etapas, três distâncias, sendo a menor com 12 Km, o que atenderia aos iniciantes, e também um pedido dos atletas que queriam mais dias para aproveitar aquelas condições. Em 2018, a diretoria da ASUP-CE era outra, com Alexandre Nogueira na presidência. Lembro que ele pediu que não cobrássemos inscrições dos atletas cearenses, mas seria inviável fazer isso pois dependíamos do valor das inscrições para viabilizar a prova. Tudo transcorreu bem e o evento foi um grande sucesso. Estava empolgado e montei um projeto ainda maior para 2019, com um grande patrocinador interessado em bancar o evento que teria uma série de inovações”, recorda João Castro.

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Estrelas do downwind mundial, Lívio Menelau e Andre Moller vieram diretamente do Havaí para competir no Ceará. Foto: Arquivo W2

Mas foi aí que o organizador foi surpreendido com uma notícia: “Estava com as negociações para a realização da próxima W2, em 2019, no mês de outubro, com o evento já anunciado no calendário, a todo vapor, quando a associação cearense lançou o Molokabra com a realização em setembro, ou seja, um mês antes do W2 e com o mesmo formato. Pensei em entrar em contato para propor juntar forças, mas como o Alexandre Nogueira tomou a iniciativa de realizar uma prova, com data próxima da minha, com o mesmo formato e público, sem me avisar, entendi que seria melhor deixar cada um cuidar de seu evento. Alguns dias depois desisti de fazer a W2 em Fortaleza, pois, cheguei à conclusão de que não valeria a pena entrar numa concorrência com os donos da casa e tirei meu time de campo para focar em outros projetos, como a expansão do Aloha Spirit Festival”, conta João Castro que, no entanto, faz questão de deixar claro que não guarda nenhuma mágoa, e frequentemente comenta que não faria um trabalho tão bem feito como o que está sendo atualmente entregue.

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João Castro (de blusa preta, no centro à dir.) entre alguns dos competidores de surfski primeira edição da W2. Da esq. para a dir: Marcelo Macuco, Carmen Lucia, Pedro Calejo e Jefferson Sestaro. Foto: Arquivo W2

“Não fiquei magoado com a atitude pois conheço o mundo dos eventos, mas fiquei um pouco surpreso pela forma como o Molokabra foi anunciado. Eu teria feito de outra maneira, mas, por outro lado, senti uma ponta de orgulho de ver a continuidade da semente plantada pelo W2 florescer em um evento muito bacana e organizado pelos donos da casa. Tenho uma relação muito boa com o Alexandre e desejo vida longa ao Molokabra”, finaliza João Castro.

Alexandre Nogueira apresenta uma visão diferente. O organizador do Molokabra Downwind conta que o evento foi idealizado já em 2018, com o mapeamento da raia feito através dos diretores da ASUPCE praticantes de downwind no Ceará, os quais apresentam sua visão sobre a competição, que procurou desde o início agregar esporte, turismo e cultura. Ao final desse mesmo ano o evento foi lançado, com as inscrições abertas no início de 2019, abrangendo raias de 5km, 12km e 30km, consolidando-se gradativamente como três percursos de 30km e a inserção de novas modalidades, a exemplo do SUP Foil.

Vale reforçar que, ao longo desta e das edições anteriores, o Aloha Spirit Mídia, mantendo seu compromisso e missão de fomentar o esporte, abriu portas com ampla divulgação e cobertura do evento, sendo a primeira matéria veiculada ainda em junho de 2019.

A trajetória do W2 se destaca não apenas pelos desafios superados para consolidar a modalidade no Brasil, mas também pelo impacto que teve no cenário esportivo local e internacional. O pioneirismo e o esforço conjunto de organizadores, atletas e apoiadores que viabilizaram a realização da competição foram fundamentais para que os frutos do sucesso do downwind cearense sejam hoje colhidos. Um legado que jamais será apagado.

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