A canoa e um dilema: autonomia x responsabilidade

Compartilhe
canoa va'a
O mar não perdoa: sem dedicação e treino, querer pular etapas é simplesmente se colocar em risco desnecessário. Foto: Ricky Esquivel / Pexels

A canoa polinésia (va’a) cresceu. Cresceu tanto que virou moda — e, como toda moda, veio acompanhado de um belo pacote de irresponsabilidade. O esporte que nasceu da tradição, do respeito e da preparação corre o risco de se tornar uma vitrine de ego e vaidade. Hoje, em muitos clubes, a pressa de competir fala mais alto que a vontade de treinar. E, no meio disso tudo, o gestor de clube vai perdendo voz e se tornando quase uma peça decorativa dentro de sua própria base. E o que é pior: muitos estão deixando a coisa rolar, carimbando inscrições e torcendo pra que tudo corra bem.

Quando um clube leva uma equipe pra competir, não está transportando “heróis polinésios de camiseta personalizada”. Está assumindo uma baita responsabilidade técnica e moral. Mas esse conceito me parece que anda em extinção. O novo lema é “partiu prova” —  junta um bando de ‘maluco’, treina uma semana, paga a inscrição e reza pro mar estar de bom humor. E se der ruim? Paciência, é “experiência”. O problema é que o mar não é simpático, nem democrático. Ele não aceita improviso, não negocia com amadorismo e normalmente ensina suas lições do jeito mais duro possível.

O pior é que muita gente ainda acredita que toda competição é igual. Sprint, maratona, longa distância, downwind, tudo no mesmo balaio da “superação pessoal”. O resultado? Uma multidão de remadores que acham que basta querer. Só que vontade não rema sem preparo, e o mar não aceita currículo de remador inexperiente. Enquanto isso, as competições oficiais, como o VAARJ e o Brasileiro, vão baixando o nível técnico das provas sob a desculpa de que é preciso “incluir todos”. Aí vêm os incidentes, a confusão e a velha reação em cadeia: federações recuam, tornam as provas mais fáceis, e o va’a vai virando um esporte de prateleira, versão “zero açúcar”, com sabor de oceano artificial.

Os clubes — que deveriam ser o alicerce, os guardiões dos atletas — estão se transformando em figurantes. Quem dá as cartas agora é o “remador freestyle”, com logo feita no Canva e bio no Instagram afirmando ter virado “atleta do va’a” da noite pro dia. Surgem “coletivos”, “projetos”, “equipes autônomas” que usam nomes bonitos pra mascarar o mesmo problema: falta de preparo e excesso de confiança.

E os gestores de clubes, cansados, estão largando de mão. Muitos já desistiram de preparar remadores pra campeonatos. Afinal, pra quê se responsabilizar se todo mundo agora é “freestyle”? Em breve veremos inscrições diretas em campeonatos, ou seja, sem vínculo com clube, sem técnico, sem nada. O sonho da autonomia total. Pra mim, esse é o pesadelo da responsabilidade zero.

O resultado é um va’a diluído, domesticado, cheio de gente confundindo “fazer o que quer” com “saber o que faz”. A federação vira babá, o organizador vira bombeiro, e o mar não irá perdoar o próximo aventureiro que confundiu coragem com preparo.

Posso parecer pessimista, mas, do jeito que está, não vejo luz no fim do túnel. E, se tiver, é o barco de apoio vindo resgatar mais um iluminado que acreditou ser o novo “Maui”, armado apenas com vontade e em busca de uma linda selfie. Enquanto o va’a continuar sendo tratado como palco pra performance de Instagram — e não como uma cultura de respeito ao oceano — o mar vai seguir ensinando. Sem dó, sem filtro e, muitas vezes, sem volta.

Não perca nada! Clique AQUI para receber notícias do universo dos esportes de água no seu WhatsApp

Compartilhe