Chris Bertish prepara livro sobre sua épica travessia de SUP pelo Atlântico
Primeiro homem a atravessar o Atlântico remando em pé, Chris Bertish prepara livro sobre a aventura e ... leia mais
Foi no início de outubro de 2020 que resolvemos tirar da gaveta uma travessia de mais de 70km circundando a Ilha de Cananéia. Até então não sabíamos que este seria nosso maior desafio a ser completado até hoje.
Difícil não só pela alta quilometragem, mas também por aspectos que a tornaria uma remada de respeito, pois estaríamos optando por remar por 15 horas em estilo “non-stop”, ou seja, paradas apenas para alimentação e hidratação.
Com isso, invariavelmente remaríamos em período noturno, além disso não teríamos barco de apoio, não teríamos sinal de celular e estaríamos sujeitos a um histórico de fortes ventos vindos do Leste.
Cananéia é um pequeno município, na verdade uma ilha, no sul do litoral de São Paulo, quase na divisa com Paraná. Segundo muitos historiadores, deveria ser considerada como município mais antigo do Brasil, mas por questões de documentação perdeu oficialmente esse posto para São Vicente.
A Ilha de Cananéia é alongada na direção NE-SW e possui uma extensão de 26km e largura máxima de 6km. Sua extremidade NE se limita com a entrada do canal que vai em direção a Iguape e sua extremidade SW se encontra nas proximidades da entrada para o mar, em direção à Ilha do Cardoso.
Localmente essas águas são conhecidas por Mar de Cananéia, que banha a cidade de Cananéia e, do outro lado da ilha, pelo Mar de Cubatão, onde se encontra a balsa e também a localidade de Porto Cubatão.
A região faz parte do Complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá, também conhecido como LAGAMAR, berço de muitos animais como os botos-cinzas, tartarugas verdes e milhares de peixes e pássaros, sendo reconhecida pela UNESCO como parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Outros locais de grande interesse são o Parque Estadual da Ilha do Cardoso e o Parque Nacional do Superagui.
Após algumas análises sobre velocidade média de deslocamento, aliado aos tempos necessários para alimentação e hidratação percebemos que dificilmente conseguiríamos fazer em menos de 12 horas de remada. Sendo assim, nossa estratégia foi aos poucos se formando.
Fechamos a data com a tábua de marés nas mãos. Decidimos não pegar grandes variações de maré, pois apesar de, teoricamente, nos ajudar em certos trechos, poderia também nos prejudicar devido à quantidade de tempo que iríamos permanecer na água.
As análises históricas mostravam predominância de ventos de direções entre Leste e Sudeste – que geralmente entram fortes na região, principalmente na parte da tarde.
A expectativa era que esse vento nos pegasse lateralmente em boa parte do trajeto e/ou também de frente, principalmente no final da travessia. O monitoramento que fizemos das condições meteorológicas e as previsões da véspera indicava que isso fatalmente iria acontecer.
Em relação a nossa preparação físico-mental para esse desafio, é interessante citar que eu e o Ulisses Bicudo já vínhamos desde o início do ano com uma série de treinos longos e travessias com alta quilometragem.
O Ricardo Padovan treinava exaustivamente mountain bike e corrida e somente no último mês retomou seus treinamentos de SUP ergômetro. Então, era também uma incógnita como seria o rendimento dele nestas condições, pois estava a cerca de um ano sem remar na água.
Chegamos na ilha no dia anterior ao desafio, na parte da tarde. Nos instalamos em uma pequena pousada a beira do Mar de Cananéia, bem próxima do centrinho e da balsa. Descarregamos nossas coisas e fomos ansiosos ver como estavam as condições na beira da água.
Assim como era previsto o vento estava sinistro e percebemos que as condições seriam extremas para nossa travessia.
O vento soprava muito forte, vindo de direção entre SE e E, batendo de frente ao píer que a gente se encontrava.
Depois de analisar novamente os gráficos dos dias anteriores e comparando com o que tínhamos naquele momento, decidimos mudar o nosso percurso, iniciando a volta em sentido anti-horário e antecipando a nossa saída de entrada na água.
Organizamos todos os equipamentos, conversamos e definimos nossa estratégia de hidratação e paradas, checamos novamente as previsões e fomos jantar.
Logo estávamos tentando dormir com aquela expectativa imensa de acordar na madrugada, fazer uma navegação noturna e imaginando tudo o que o dia nos traria pela frente.
Com certeza seria um dia interminável e teríamos muitos obstáculos para superar.
Acordamos às 2h da manhã, uma madrugada fria e calma, tomamos um café reforçado enquanto organizamos em paralelo os mantimentos a serem levados.
Fechamos todos os bags e descemos com nossas pranchas pelas ruas vazias de Cananéia. Cerca de 50 metros depois estávamos todos no pequeno píer de madeira, com as lanternas de cabeça ligadas e nos ajudando mutualmente, com muita cautela, na colocação de todos os equipamentos na água.
O céu estava estrelado e a lua de quarto minguante dava o tom especial para o momento. Todos com as pranchas na água começamos a remar por volta das 3h30, com um leve vento soprando pela gente.
Logo percebemos que não necessitaríamos de luz de lanterna e seguimos o clarão do luar em direção NE. Todos num ritmo bem cadenciado e curtindo os primeiros momentos da travessia.
O dia foi de leve se tornando mais claro, e uma grande massa de nuvem cinza estava posicionada, quase que solidificada bem na posição do nascer do sol.
Por volta do km 15 as primeiras luzes raiaram e foi inesquecível. Começamos a perceber as primeiras construções de pesca, uma tradição muito antiga, os chamados currais, que são feitos de madeira e bambus e dispostos como uma forma de armadilha para peixes durante os movimentos das marés.
Logo nessa parte da manhã fomos surpreendidos por botos-cinzas, típicos da região, que vinham aos montes, sempre a certa distância da prancha, com desconfiança, com suas barbatanas saindo e entrando na água.
Realmente um espetáculo emocionante. Era formidável também as revoadas, nessas horas da manhã, de inúmeros guarás-vermelhos, com sua plumagem magnífica passando sobre nossas cabeças.
Por volta do km 20 fizemos nossa primeira grande parada para alimentação e hidratação e também foi nesse momento em que tivemos uma dúvida em relação a nossa localização, por causa de uma bifurcação.
Acabamos entrando à esquerda, em um trecho mais fechado de canal. Era estranho, não lembrávamos desse canal em nossas análises prévias de navegação e também não conseguimos sinal de celular para checar a localização.
Por sorte passava um barco pesqueiro que nos deu a informação correta. Realmente tínhamos entrado em um braço de mangue, mas o mesmo saia no canal principal.
Já no canal principal pegamos a sua esquerda e passamos ao km 23, quase em frente ao vilarejo de Pedrinhas e logo avistamos a grande ponte que liga o continente à Ilha de Cananéia.
Os próximos 5km sentimos pela primeira vez o vento nos nossos rostos. Apesar disso nosso ambiente era de muita harmonia, íamos conversando, rindo, cantando e nos divertindo uns com os outros, além de remarmos sem nos distanciarmos muito, para dar a segurança necessária ao grupo.
No km 30 demos outra parada para alimentação e o vento já tinha dado uma trégua para gente.
Aproveitando que o sol estava cada vez mais alto naquela manhã tardia, demos nossos primeiros pulos nas águas cristalinas.
Vez ou outra víamos novamente famílias de botos-cinzas, tartarugas verdes, peixes como baiacus e arraias lindas que passavam por debaixo da prancha.
A próxima grande parada foi em uma Marina, na localidade de Porto Cubatão, onde compramos algumas garrafas de água para abastecer nossos bags.
Estávamos mais ou menos no km 43 e o cansaço já começava a bater, assim como a sensação térmica devido ao sol, pois já passava do meio dia.
Era interessante a reação das pessoas que encontramos pelo caminho. Elas ficavam assustadas quando comentávamos por onde tínhamos passado e para onde estávamos indo.
Elas simplesmente não acreditavam que estávamos fazendo a volta da ilha. Acho que esse feito, pelo menos em se tratando de SUP, era inédito até o momento.
De volta para a água, o vento começou a dar as suas caras, de verdade. Era um vento forte de leste que fez com que todo o ambiente ficasse diferente.
Por sorte ele pegava a gente de costas, na verdade um pouco de lado, e por isso forçava a correção de nossa navegação de tempos em tempos, para não desviar da direção correta – que era margear a parte esquerda do canal.
Pegamos este vento até o km 54, onde começamos a fazer a curva a esquerda seguindo o leito principal do Mar de Cubatão.
Quando iniciamos essa mudança de direção percebemos que o pior nos aguardava. Esse Leste agora nos pegava de frente.
Um UPWIND (sim, com letra maiúscula) sinistro, que vinha forte e constante. Por vezes rajadas fortíssimas deixavam toda a água crispada e com muitos carneirinhos, formando verdadeiras ondas de vento.
Encostamos em uma prainha aos 57km e fizemos nossa última grande refeição, aproveitando para descansar do trecho anterior e nos prepararmos também mentalmente para o que teríamos pela frente.
O sol batia forte, era por volta das 15h, e tínhamos que encarar aquele desafio. As condições estavam extremas, estávamos cansados e não tínhamos muito tempo de sol. Olhando ao longe, percebemos que faltavam muitos quilómetros para o trecho da entrada do canal. Tinha muita água para remar e com aquele vento não seria nada fácil.
Apesar do vento pegar a gente de frente, ele acabava nos empurrando, devido a fisiografia da ilha, para as margens do mangue, onde era muito raso e lamacento. Outra peculiaridade do trecho era a presença de muitas armadilhas de peixes – os currais, que estavam dispostas a cada quilómetro mais ou menos e ficavam perpendicular à margem. Sendo assim, tínhamos que permanecer longe da margem por causa do mangue e também passar por fora dos currais, para não ficar preso nas armadilhas dos peixes.
Nosso ritmo caiu drasticamente para menos de 3 km/h e tivemos que aportar por duas ou três vezes na beira do mangue para poder nos abrigar, recuperar fôlego, conversar sobre as estratégias e principalmente para criar ânimo mental para encarar aquelas condições.
Era uma parada de descanso e de suplementação, onde finalizamos quase toda nossa carga de água e alimentos.
Aos poucos, fomos avançando à duras custas, com o físico e psicológico bastante abalados pela situação. O caos tinha se instalado. Tivemos problemas com nossas câmeras de imagens e ninguém conversava mais, nem tinham as brincadeiras e piadas de antes, o semblante estava fechado e a concentração era plena.
Essa era a hora que estávamos aguardando, a hora da provação, onde tínhamos que mostrar nosso autocontrole e tomar as melhores decisões possíveis para o momento.
Iniciamos o contorno novamente à esquerda, aos 63km. O vento não dava trégua e pegava a gente agora lateralmente, nos empurrando com força para águas muito rasas.
Tínhamos que remar somente do lado esquerdo e era muito difícil manter a direção. Bolhas nas mãos e dores gerais, principalmente na lombar se agravaram. Neste trecho ficamos atolados por diversos momentos, tendo que andar sobre o mangue e arrastar as pranchas e, às vezes, remar empurrando com a pá dentro da lama.
Restavam ainda 8km de vento lateral até a chegada. Conseguimos avistar as casinhas da Ilha Comprida e também o morro que nos indicava a proximidade do centro de Cananéia.
Desviamos dos trechos rasos à duras penas e entramos nos limites da cidade, onde tinha maior movimentação de barcos de pesca.
Como uma miragem maravilhosa, avistamos a balsa e com isso aportamos novamente aos 71km no pequeno píer de madeira que deixamos 15 horas atrás.
Chegamos um de cada vez, exaustos e perplexos com as forças da natureza. Quem se dispõe a sair de sua zona de conforto vai entrar nesse novo mundo, um mundo de antagonismos, uma alternância de vitória e derrota, de desânimo extremo em meio às dificuldades que o caminho nos impõe.
Um mundo onde a sobrevivência está em primeiro lugar. É aprendizado, harmonia consigo mesmo, autoconhecimento, um sentimento de cumplicidade com o amigo que está ao lado e de superação perante todos os obstáculos.
Enfim, são nessas horas que realmente crescemos e ganhamos sabedoria.
Obrigado a todos que contribuíram direta e indiretamente para tudo que aconteceu nessa grande aventura.
Nossos amigos e principalmente nossa família que norteiam nossas decisões e aparecem como uma visão, na forma de flashes nos momentos mais difíceis, fazendo renascer nossa disposição e vontade de voltar para casa. Obrigado meus irmãos de remo SUP Extremo.
SUP Extremo, 07 de novembro de 2020