Jordan Wylie ultrapassa a marca de 560 km de remada
Em busca de estabeler o recorde mundial de distância percorrida remando de SUP, Jordan Wylie fala sobre ... leia mais
Quando ela passa, arrasta sem piedade tudo o que está no seu caminho. Árvores – até as de raízes mais profundas – animais desprevenidos, embarcações igualmente desprevenidas e até casas, como se tudo fosse de brinquedo.
Ela segue seu rumo, mas antes de podermos vê-la em sua imponência, ela envia o prenúncio: um estrondo assustador como se fosse de uma trovoada contínua ou de uma onda que nunca para de quebrar.
Esta é minha primeira descrição da Pororoca, um fenômeno incrível provocado pelo choque brutal de duas forças indomáveis da natureza: de um lado, a correnteza irrefreável de águas fluviais e, de outro, as águas de marés oceânicas.
Antes de surfar de canoa polinésia esta onda, li uma frase de um surfista de São Paulo chamado Júlio Crepaldi: “Descrever a pororoca é limitá-la”.
Não chegaria a entendê-la se não tivesse vivido o que pretendo descrever nestas linhas para o Aloha Spirit Mídia, mas estou certa de que será difícil ser fiel em palavras a tudo o que esta onda representa.
Formávamos uma equipe de cinco remadores, todos acionados pelo convite da médica paraense Roberta Medeiros, que deixou o Norte do Brasil para viver no Rio de Janeiro, onde conheceu a canoa e, há tempos, alimentava o sonho de voltar para a Amazônia levando consigo sua paixão pelo esporte.
Desde o início ela falava da extrema simplicidade do povo da cidade que iríamos conhecer, contando histórias de jovens locais que surfavam a pororoca em porta de geladeira.
Rapidamente a vontade de se envolver com o lugar já era tão grande quanto a de surfar a onda. Para os três dias de surfe planejados para a expedição, pretendíamos fazer um revezamento nos bancos da canoa OC4.
No entanto, já no primeiro dia, Ian Wyatt, que havia ido para a session munido de SUP wave, adrenalizado com tudo o que tinha vivido, comunicou:
“Quero evoluir nestas ondas e continuarei no SUP até o final da viagem. Me diverti muito com a prancha hoje!”.
Assim, formamos na canoa o time fixo de três mulheres e um homem, e aquele era o dia 9 de março de 2020, um dia depois do Dia Internacional da Mulher.
Nada premeditado, mas uma feliz e incentivadora coincidência. Éramos eu (Luiza), Michelle Freire, remadora de Macaé e esposa do Ian, Roberta e Fabiano Faria.
Fabiano, leme irretocável da equipe, com a tranquilidade que lhe é usual, tentou descrever a pororoca: “É uma onda igual a qualquer outra”.
E após uma pausa, concluiu: “Mas completamente diferente”.
A história do surfe na pororoca, no Brasil, começou em 1997, protagonizada pelos surfistas Guga Arruda e Eraldo Gueiros, os primeiros brasileiros a domarem sob os pés este incrível fenômeno, no Rio Araguari, no Amapá.
De canoa polinésia, a inauguração foi dada ainda em 2004 no Rio Capim, no Pará, com o surfe de uma canoa OC6 da expedição da pioneira em esportes de aventura na Região Norte do Brasil, a Rumo Norte Expedições e Kaluanã Vida ao Ar Livre, liderada pelos sócios Gelderson Pinheiro e Murilo Bellese.
Como remador convidado, estava o empresário paulista Fábio Paiva, um dos precursores do esporte no Brasil e quem tinha vendido a canoa OC6 – entre as primeiras fabricadas no Brasil – para o Gel.
Mas como desenhar, em 2020, uma aventura praticamente sem precedentes como esta?
Por mais audacioso que pareça o surf de canoa na pororoca, todo o mérito de desbravamento se deve a surfistas que, desde 97, vem desvendado estas ondas, sendo um deles o presidente da ABRASPO, Associação Brasileira de Surfe da Pororoca, Noélio Sobrinho, consultor técnico da expedição, com quase 200 pororocas surfadas no mundo.
Toda nossa logística foi planejada pela Rumo Norte Expedições, que cuidou de aspectos essenciais que podem determinar o sucesso ou o fracasso de uma aventura como esta.
O fenômeno da pororoca acontece nas mudanças de fases da lua, e tem o seu ápice nas luas cheia e nova, na entrada da maré alta, a cada 12 horas.
Por isto, o controle de horários de maré e hora da passagem da onda, cálculo do tempo de preparo do material e deslocamento até o local do surf são detalhes que precisam ser muito bem geridos.
Tudo isto, incluindo a contratação e preparação de jetskys com imediata substituição em caso de danos e outros aspectos determinantes, além dos básicos como estadia e alimentação, foram tratados com excelência pela Rumo Norte.
E o mais legal, em minha opinião, é que a empresa também contou com a expertise do surfista local conhecido como Ruan Pororoca, nos deixando seguros de que estávamos sendo guiados pelo know-how de quem melhor conhece cada curva e cada bancada do Rio Mearim.
Passamos três dias buscando exaustivamente o extremo, e isto consumiu muita energia da nossa expedição.
Após o sucesso do primeiro dia, em que surfamos uma onda maravilhosa que nos carregou por três minutos e meio, saímos em êxtase, e nos sentimos encorajados a tomar a decisão de, no segundo dia, ousar.
Dirigimo-nos para o local onde fora vista a maior parede no dia anterior. Lá seria o nosso drop.
Quando ela chegou, algo estava diferente. Ela vinha com o dobro de parede, potência e velocidade, fechando o rio de uma margem a outra.
O que estávamos fazendo ali? E assim começou uma corrida ensurdecedora em meio ao rugido da pororoca e o ronco do motor do jet, já em alta velocidade, rebocando a canoa para fugir da onda e buscar um melhor posicionamento.
Usa-se muito o termo “caça à pororoca”. É realmente uma caça, a comparação é boa, sobretudo quando se pensa na conhecida frase: “um dia é da caça, outro do caçador”.
Naquele momento, uma lacuna enorme na comunicação entre canoa e apoio foi criada e todos nós erramos (errar tentando faz parte do processo). Mas arriscamos o drop, era tudo ou nada.
A canoa foi sugada pela onda e capotou de popa, ejetando para longe os remadores dos bancos 3 e 4 (Roberta e Fabiano).
Como já havíamos tido hulis e alagamentos no dia anterior, cada um já sabia o que fazer para não perdermos tempo no processo, aumentando as chances de voltar a correr atrás da onda para pegá-la novamente na bancada seguinte.
No primeiro dia não havia cabo auxiliar amarrado à ama para desvirar a canoa, já no segundo, estávamos prevenidos e desvirando e esvaziando a canoa bem rápido.
Neste quesito, identificamos como grande acerto a condição que o Ian nos trouxe quando decidiu que surfaria unicamente de stand up paddle.
Manter a mesma equipe na canoa, sem nem mesmo revezamento entre os bancos, ajudou muito na evolução dos ajustes finos, dia após dia.
Quando se perde a onda, agilidade e rapidez são cruciais, pois é possível ser rebocado pelo jet até a bancada seguinte para entrar na onda, e é aí que reside um aspecto muito importante a ser registrado para todos que ainda vão surfar a pororoca de canoa.
Esta corrida atrás da onda é um procedimento normal no surfe da pororoca. No caso de surfistas e bodyboarders, eles ficam a bordo de uma banana boat rebocada pelo jet e, se não encontram brechas pelas costas da onda que segue seu rumo, passam por cima dela, o que resulta em um tombo que pode ser alto, mas que é absorvido com fluidez pelo jet e pela banana.
De canoa este procedimento fica muito mais complicado, pois não podemos nos arriscar neste alto degrau de diferença de altura para atravessar a onda por trás (bem que nos arriscamos, mas não deu certo).
É preciso circular o rio margem a margem buscando uma parte mais funda do rio onde a onda desaparece para seguir na caça à pororoca. Mas com isto perdemos muito tempo, pois a onda continua seguindo.
E quanto mais se acelera no reboque de uma canoa, mais se leva o equipamento ao extremo do que ele pode suportar.
Passamos por isto diversas vezes e parecia que o reboque estava tão adrenalizante quanto o drop, porém ruim. A proa da canoa levanta e a popa afunda e ainda recebe toda a água que está sendo deslocada.
A consequência disto é muita água dentro canoa, deixando-a pesada a ponto de arrebentar o próprio cabo do reboque, como também aconteceu conosco neste fatídico segundo dia de surfe. A onda foi tão grande que pegou a todos de surpresa.
Naquele dia não teve surfe para ninguém, nem canoa, nem surfistas de prancha. Todos foram varridos por aquela onda de uns 8 a 9 pés. Foi o dia da pororoca.
As correntezas são fortes e podem dissipar a equipe em questão de poucos segundos em um huli. A flutuabilidade é menor do que na água do mar, e a água é barrenta, dificultando a visualização das pessoas naqueles momentos em que tudo precisa ser feito com muita agilidade e rapidez.
Por estes e outros motivos óbvios, acho importante registrar que o uso do colete salva-vidas não deve ser uma questão de opção, ele é essencial. Quanto ao capacete, em se tratando das ondas grandes, acreditem: não é exagero.
Muito se fala nos galhos de árvores que correm junto com a onda. Mas eu vi foram enormes troncos! O risco é real e a prevenção a ele é inteligência.
Ás 5h da manhã do terceiro e último dia, no saguão do hotel, depois de muita resenha e estratégias traçadas no dia anterior, todos tentavam disfarçar o alto nível de adrenalina e sentimentos desconcertantes de auto cobrança.
Ainda não tínhamos todas as respostas. Nem para as perguntas já prontas por quem jamais havia surfado a pororoca de canoa como para as novas perguntas que surgiram após aqueles dois intensos primeiros dias.
Ao longo do rio há bancadas onde a onda ganha tamanho e forma parede, exatamente como acontece no mar.
Da mesma forma, também como no mar, o ponto exato do drop nestas bancadas pode variar em vários metros de acordo com a força da onda no dia, com as alterações do fundo provocadas por ondas anteriores e outros fatores.
Por estes e outros motivos, o reboque feito por um jetsky é crucial quando se fala da temporada das ondas grandes, que vai de março a abril.
Até aí não restam dúvidas: quando a onda chega é preciso estar no lugar certo e não tem como vencer a força da correnteza apenas na remada para alcançar o ponto certo quando o surfista já se encontra à frente da onda.
Mas uma vez posicionados, aí sim precisávamos de uma resposta: é melhor dispensar os poucos segundos que restam antes de a onda alcançar a canoa para entrar na remada ou fazemos tow-in (modalidade em que o jetsky puxa a canoa para colocá-la em movimento na onda)? Levamos muitos caldos e capotadas para chegar à resposta.
Tivemos mais sucesso arriscando o drop na remada. No caso das ondas grandes, aumentam as chances da canoa ser sugada para trás, mas, por outro lado, é possível sentir melhor o momento do drop, o que é muito mais emocionante.
Neste ínterim, detalhes minuciosos precisam ser observados pela equipe. Qual o momento exato em que o voga deve soltar o cabo de reboque? Quem decide o ponto específico na parede da onda, o leme ou o piloto do jet?
Uma vez decidido isto, como é feita a comunicação entre piloto e lemet se o primeiro está olhando para frente com as mãos na direção e o segundo também com as mãos ocupadas travando o remo, e todos estão em meio ao rugido alto da pororoca?
Quem rema e surfa de canoa sabe que essas e outras decisões, naturalmente, cabem ao leme. No entanto, quando falamos em reboque de jet, também estamos falando em um segundo tomador de decisões em um momento decisivo e que considero um dos mais críticos do surfe na pororoca, e que acontece em fração de segundos.
Nossa maior dificuldade foi encontrar esta comunicação ideal para buscar o ajuste fino. Não chegamos a encontrar a solução, mas temos como palpite de que leme e piloto devem conversar bastante fora d’água e, assim como a equipe da canoa, o piloto também deve ser o mesmo para todos os dias.
Jamais havia passado pelas ideias deixar nossa OC4 surfe a 3.000km de distância da nossa casa em Niterói – RJ. Mas o feeling veio ao mesmo tempo para nós dois.
Logo após o primeiro dia de surfe eu tive um sentimento de que a Paikea poderia permanecer em Arari. No dia seguinte, Fabiano comentou que teve um insight, e queria saber minha opinião: “E se deixarmos a Paikea aqui?” Nada mais precisou ser dito.
O uso da canoa não será vinculado a atividades comerciais como a venda de pacotes para surfar ou a fins lucrativos como aluguel.
Deixamos a canoa com o sentimento de que ela deve servir para o desenvolvimento da modalidade esportiva (remadas diárias) para jovens da comunidade do Curral da Igreja, às margens do Rio Mearim.
Eles poderão descobrir o quanto a cultura polinésia encontra paralelos com a cultura brasileira no que tange a forma de vida, a relação com a natureza e a construção de canoas de um tronco só.
Estamos certos de que, paulatinamente, a região começará a ser frequentada por remadores na adrenalizante “caça à pororoca”, e este será um movimento positivo para a cidade.
Entendemos, com isto, que para o “desenvolvimento do surfe de canoa no local” é saudável, antes de tudo, que haja o “envolvimento do surfista local com a canoa”.
A frente desta missão está o surfista conhecido como Ruan Pororoca, um ararirense de 19 anos respeitado e admirado pelas dezenas de ribeirinhos que se aventuram na onda. Sua trajetória no surfe é de emocionar, a começar pelo fato de que aprendeu a surfar em uma porta de geladeira, cinco anos atrás.
Em um trabalho social e voluntário, Ruan irá iniciar jovens locais na canoa e, para viabilizar este trabalho, desenhamos propostas de contrapartidas financeiras de acordo com a necessidade deste projeto e coerente ao orçamento planejado por remadores do Brasil e do mundo – com experiência em surfe de canoa – que queiram utilizar a Paikea e ajudar a caminhada do Ruan e de sua comunidade. Acreditamos que, em breve, eles estarão aptos a receber este nicho do turismo que tende a crescer.
Em nossa expedição, levamos mais de dez pranchas usadas e dezenas de peças de roupa de surfe como johns e camisas de lycra novas, tudo doado por amigos que contribuíram com uma campanha que antecedeu a viagem.
Levamos também o Projeto Vou de Canoa, com o qual fizemos uma ação educativa para as crianças de uma escola local com uma palestra de sensibilização ambiental com exposição de conchas, areias e outras curiosidades marinhas, além de apresentarmos um breve filme do nosso surfe no Rio Mearim, contando a eles o motivo de estarmos visitando a cidade deles.
Concluímos que o surf de canoa na pororoca é tão imprevisível e guarda tantas surpresas quanto o surf no mar. Haverá dias do surfista e dias da pororoca, e há que se estar psicologicamente preparado para lidar com os dias da pororoca.
Eles vão existir, e não serão de derrotas, mas de tentativas. Desvendamos que a pororoca não precisa ser estereotipada como inatingível ou vinculada a um alto investimento financeiro.
Estes fardos poderão pouco a pouco ser depositados no fundo do rio, até se dissiparem, à medida que mais e mais expedições de qualquer natureza se aventurarem no propósito de viver a transformadora experiência na pororoca, seja em um grande e ousado projeto ou em uma despretensiosa vontade de surfar a onda, como foi a nossa.
Concluímos também que o surfe de canoa na pororoca pode ser experimentado de forma um pouco mais sutil – mas não menos emocionante – do que estávamos determinados a buscar.
Existem bancadas onde a onda perde um pouco da força que podem ser mais exploradas pela canoa polinésia e tendem a ser mais acessíveis a um público maior.
Pororoca é uma palavra de origem tupi que significa “estrondo”. Seu rugido grave interrompe a paz da floresta, alerta aos animais e desencadeia as revoadas.
Em nós, provoca a descarga de adrenalina e dilatação das pupilas. Ela está chegando! O volume de água é muito grande, assusta e afugenta ribeirinhos. Foi mais ou menos assim minha primeira descrição da pororoca no início deste artigo.
Mas hoje já tenho outro olhar, e arriscaria uma segunda descrição: A Pororoca renova. Ela reconstrói a paisagem dos lugares por onde passa, leva mais água para os estuários e leva turismo para as cidades. Ela traz vida, alegria e transformação.
Talvez alguns estejam se perguntando: “Cheguei até aqui e não li sobre a onda do terceiro dia!”.
Esta resposta será em imagens produzidas pela Fresh Films, que em breve trará a novidades. Termino o artigo com uma expressão indígena usada pelos surfistas de pororoca que é exatamente como o nosso conhecido “Aloha”: Auêra auara!
Letícia Lana, Vitor Paganotto, Gel Pinheiro, Alex Cavalcante, Ruan Pororoca, Noélio Sobrinho, Thiago Jambrado, Fabrício Mota, Lucas Silveira, Yara Taborda, Equipes das pousadas Portal do Mearim e Pousada Maramazon.
Agradecemos também aos amigos que doaram material de surfe para a comunidade: Giuliano Lara (Itacoatiara Pro), Graça Faro, Márcio Rodrigues, Guilherme Monteiro, Haissa Carloni, Gustavo Villela, Lívia Teixeira, Fábio Fulchi, Juninho Conde e Guilherme Herdy.