Afinal, como devemos chamar a canoa? Havaiana ou Polinésia?

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canoa havaiana
Obra do artista plástico Stephen Jorgensen retrata uma canoa havaiana ancestral nas águas de Waikiki. Foto: Reprodução

Esta é uma dúvida recorrente: como como devemos chamar a canoa? Havaiana ou Polinésia? A resposta, contudo, é mais complexa do que parece.

Antes de entrarmos especificamente no universo das canoas, vou começar o texto com um exercício hipotético, que certamente vai nos ajudar a compreender melhor essa questão.

Imagine se Mitsuke Harada, a quem é atribuída a primeira academia de karatê do Brasil, ao inaugurá-la, em 1956, chamasse sua arte marcial de “shotokan”, estilo de karatê praticado por Harada?

Dessa forma, o que hoje conhecemos como “karatê” (modalidade de arte marcial) passaria a ser chamado no Brasil pela designação de um e seus estilos (shotokan). E como seria esse entendimento à medida que demais estilos de karatê começassem a chegar ao Brasil?

Duvido que Yoshihide Shinzato, o mestre que trouxe o estilo “sorin-ryu” para o Brasil, acharia bacana chamar sua modalidade de “shotokan” ao invés de karatê, você não acha?

Pois bem, agora que falamos sobre a diferença entre estilos e modalidades, vamos ao que interessa.

Canoa Havaiana ou Polinésia?

canoa havaiana polinésia
Através de canoas movidas à vela e remo os polinésios foram capazes de povoar ilhas dentro de uma enorme área do oceano pacífico. Foto: Reprodução / Bertram Photograph Collection

De acordo com historiadores, uma imensa região do Oceano Pacífico, de perímetro triangular, que abriga um conjunto de ilhas, cujos vértices são formados por Nova Zelândia (Aotearoa), Ilha de Páscoa (Rapa Nui) e Havaí (Hawai’i), foi inicialmente ocupada há cerca de três mil anos por um povo de mesma etnia e cultura.

Da mesma forma que os habitantes de um continente são chamados de “americanos”, africanos” ou “europeus”, as populações que ocuparam essas ilhas passaram a ser conhecidas como “polinésios” e o conjunto de ilhas ocupadas tonou-se a “Polinésia” ou “Triângulo Polinésio”.

Dentro desse contexto, é fundamental o entendimento de que esses “pedacinhos de terra” cercados entre si por milhares de quilômetros de água, foram alcançados por meio de canoas cuja propulsão era feita através de remos e velas, motivo pelo qual essas embarcações se tornaram um dos mais fortes e representativos ícones da cultura polinésia, mantendo suas características fundamentais – o casco, chamado “hull”, o flutuador lateral (“ama”) e os braços que ligam a canoa ao flutuador (“iakos”) – mas com algumas adaptações de acordo com as características geográficas locais.

Nas ilhas havaianas, por exemplo, onde o mar é mais agitado, o casco dessas canoas passou a ser construído com uma curva de fundo acentuada, mais eficaz para enfrentar ondas de frente. Já no arquipélago da Polinésia Francesa, cujas ilhas são protegidas por grandes barreiras de corais, formando anéis em torno delas, canoas menos robustas, com cascos mais alongados, menos curvatura de fundo e, portanto, mais velozes, funcionam melhor nas imensas águas abrigadas e ricas em pescado.

Essa mesma lógica se aplica às demais ilhas da Polinésia, cada qual com seu relevo costeiro próprio. Ou seja, os habitantes de cada uma delas foram desenvolvendo suas canoas de acordo com as características de mar ao redor.

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Independente da ilha polinésia, esse tipo de canoa sempre manteve o mesmo padrão de construção, mas com algumas adaptações em termos de design, de acordo com as características do mar ao redor. Foto: Reprodução

Dessa forma, com o passar dos anos, foram surgindo diferentes estilos de canoas, mas respeitando-se a estrutura básica de todas elas: o casco (hull), o flutuador lateral (ama) e os hastes que ligam a canoa ao flutuador (iakos).

Os nomes também passaram a representar essas distinções. No Havaí, elas são chamadas de “wa’a”; no Taiti, de “va’a”; na Ilha de Páscoa de “Hoe Vaka”, e assim por diante. Com a chegada dos colonizadores europeus, as canoas passaram a ser chamadas por diferentes nomes. É o caso de “outrigger canoe”, pelos ingleses no Havaí e “piroga”, pelos franceses no Taiti.

Mas o amor dos polinésios pelas canoas, todavia, nunca mudou, mesmo nas primeiras décadas da colonização europeia, quando a imposição de costumes estrangeiros foi mais forte.

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Típicas canoas taitianas: casco mais estreito e cockpit são as características mais marcantes. Foto: Reprodução

Apesar da forte imposição cultural e política imposta pelos colonizadores, subvertendo costumes e práticas ancestrais, os polinésios seguiram remando, e competindo (muitas vezes clandestinamente). Portando, não só o formato das canoas, mas as técnicas de remada também se desenvolveram de acordo com as características de cada ilha. E isso perdura até hoje, sendo as técnicas mais difundidas a “havaiana” e a “taitiana”.

Ainda que a duras penas, a cultura da canoa resistiu e partir do século 20 as competições voltaram a fazer parte de calendários oficiais. primeiro no Havaí, seguido pelo Taiti e demais ilhas do Triângulo Polinésio, dando início à popularização da modalidade para outros países.

Rio Va'a 2020
As canoa havaianas são caracterizadas por cascos mais largos e abertos. Foto: Paty Vita

As influências estrangeiras também passaram a ser exercidas. Tanto nas técnicas de construção das canoas, quanto em seus desenhos. E enquanto os taitianos foram mais abertos a essas influências, tornando suas canoas ainda mais estreitas e desenvolvendo cockpits, os havaianos mantiveram-se mais fiéis às linhas originais de suas wa’as. Outras ilhas da polinésia, com o tempo, passaram a adotar o desenho taitiano, que vem se tornado cada vez mais popular.

Bem, se você chegou até aqui, já deve ter percebido que a modalidade obviamente é “polinésia” e que a “canoagem havaiana” é uma entre as diferentes categorias de “canoagem polinésia”. Mas, então, por que no Brasil a modalidade é mais conhecida como “canoa havaiana”?

Lanakila chega ao Brasil

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Lanakila, a primeira canoa polinésia a navegar no Brasil, hoje se encontra restaurada, em Niterói (RJ), na MacKnight Paddle School. Foto: Reprodução

A primeira canoa a chegar ao Brasil, batizada de “Lanakila” (“vencedora” ou “conquistadora” em havaiano), foi um modelo havaiano, trazida do Canadá pelo remador carioca Ronald Willians, que estava voltando a morar no Brasil, em parceria com mais dois brasileiros: Fabio Paiva e Frederico Dias Peres no ano 2000.

Na mesma época em que Ronald buscava formas para trazer sua canoa para o Brasil, Paiva, campeão brasileiro de canoagem, havia tido contato com a modalidade durante uma viagem internacional e com a ajuda de seu amigo e também remador, Fred Peres, estudavam uma forma de importar uma OC6. Os três se conheceram em um chat da internet e de imediato compreenderam que deveriam juntar forças. Assim, estabeleceu-se uma parceria através da qual a canoa desembarcaria no Porto de Santos, onde a embarcação serviria de modelo para a produção de um molde, para em seguida ser encaminhada para o Rio de Janeiro, onde Willians fundaria seu primeiro clube.

Em seguida, Ronald e Fabio, cada qual em seu estado de origem, deram início a um trabalho de popularização da modalidade. A princípio, a chamavam de “canoagem outrigger”, mas muitas pessoas não entendiam a referência.

Paiva, que já era uma figura conhecida no meio da canoagem, recebia muitos convites para participar de corridas de aventura, que eram uma verdadeira febre o início do século XXI. Percebendo o potencial da va’a para segmento, ele passou a exibir a canoa em feiras de esportes outdoor e importantes competições, dando início à divulgação da modalidade para o grande público.

Foi então que, durante uma reunião com membros da Embratur, ele percebeu haveria uma aceitação e entendimento muito maior quando se referia a suas canoas como “havaianas” ao invés de “outrigger”. E assim, o nome “canoa havaiana” passou a ser mais difundido, inclusive em ações da própria Embratur para divulgar o turismo de aventura no Brasil.

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Primeira foto oficial da Confederação Brasileira de Va’a – CBVAA, em 2016. Foto: Reprodução/ CBVAA

Contudo, em 2007, durante uma apresentação da “canoa havaiana” nos Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, considerada o marco para que o esporte se tornasse oficial no país, ficou evidente que, ao menos oficialmente, a modalidade deveria ser designada como “canoagem polinésia” ou “Va’a”, terminologia adotada pela IVF (International Va’a Federation), a organização mundial de maior relevância internacionalmente.

Assim, a partir do início do desenvolvimento institucional da modalidade no Brasil, primeiro, ligada à Confederação Brasileira de Canoagem (CBCa) e, em seguida, com a fundação da Confederação Brasileira de Va’a (CBVAA) as expressões “canoagem polinésia” e “Va’a” passaram a ser mais empregadas, inclusive pelo próprio Ronald Willians, que já havia batizado, ao lado de Nicolas Bourlon, o clube pioneiro carioca de “Rio Va’a Nui Hoe”.

O termo “canoa havaiana”, contudo, continua sendo bastante difundido, principalmente por clubes, o que é natural, afinal, a influência do Havaí foi muito forte, sobretudo no início da modalidade por aqui e muitas bases, de fato, remam com “canoas havaianas” e aplicam “técnicas havaianas” de remada.

Entretanto, tendo em vista que esse modelo de canoagem tem sua origem arraigada às raízes da cultura polinésia, eu, como jornalista e historiador do assunto, acredito ser o mais correto chamá-las genericamente de “Canoas Polinésias”, afinal, seja qual for o estilo, a origem é uma só: a Polinésia.

Contudo, independente disso, seja qual for a nomenclatura usada, o mais importante, que é a magia e a tradição que essa modalidade de canoagem nos oferece, seja mantida e respeitada.

Aloha

*Esse texto é uma adaptação, com mais detalhes e informações, de uma matéria escrita por mim, em 2016, para o site Waves.

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