Remando em Preservação – Diário de Bordo IV

Compartilhe
Remando em preservação
Chegada em Vitória após Vitória após 1003 km percorridos. Foto: Arquivo pessoal

A meteorologia continuou invertida com muitas precipitações e ventos quilométricos, que hora rasgavam os ares vindos do sul, hora do norte. O fato é que aquele vento nordeste brando com céu azul e mares calmos, característicos no final da primavera e que anunciam a chegada do verão, ainda não compareceram. Toda essa condição tem nos dado muito trabalho, trazendo ondulações grandes e ventos contrários, mar agitado com chuva, raios. Continuamos num difícil jogo de xadrez com a natureza.

Ao adentrarmos na Costa Dourada, ainda no município de Mucuri, sentimos o poder de um novo mar com ondas fortes estourando na areia. Uma região de falésias, as últimas que veríamos por um longo litoral desértico até Regência no Espírito Santo. Pernoitamos uma noite e no dia seguinte seguimos por uma longa e penosa jornada de 40,5 km até a cidade capixaba de Conceição da Barra.

Veja também > Remando em Preservação – Diário de Bordo III

O novo cenário trouxe dunas de areia amarelada e restinga, quilômetros e mais quilômetros de praia, um grande deserto de mar marrom ou praticamente negro quando atravessávamos alguma foz de rio. Cansativo do ponto de vista emocional, já que sem alterações de cenário, as metas se resumiam em atingir uma longínqua ponta de praia que praticamente sumia no céu acinzentado. O ambiente se tornava assustador ao percebermos grandes e fortes ondulações rompendo com força, o que tornava nossas saídas e entradas no mar motivos de grande angústia e tensão.

“Os ‘bichos da lama’ agora batem no peito com alegria ao assumirem que são catadores de caranguejo”. Foto: Arquivo pessoal

Em Conceição da Barra percebemos ainda mais o avanço do nível do mar, que já chegou a tomar dois quarteirões de casas e ruas, obrigando a instalação de quebra-mares na tentativa de conter o fenômeno da natureza. Seguimos viagem por mais 20,35 quilômetros até o famoso balneário de Guriri, distrito da antiga cidade de São Mateus e mais 24,2 km até Barra Nova, onde tivemos grande dificuldade para chegar, em função de forte arrebentação de ondas e uma maré de vazante que fazia o rio correr com muita força contrária ao nosso destino.

No dia seguinte desabou outra tempestade com fortes ventos de sul e fomos obrigados a parar por 5 longos dias. O alento é que fomos abraçados pela vizinha Campo Grande. Trata-se de uma comunidade tradicional de catadores de caranguejo que passou por uma linda transformação. Mesmo com poucos estudos, fundaram por lá uma associação e passaram a lutar por melhorias coletivas. Hoje possuem uma tradicional festa de caranguejo que recebe muita gente de toda a região norte do Espírito Santo.

Mas o melhor foi constatar que os “bichos da lama” agora batem no peito com alegria ao assumirem que são catadores de caranguejo, uma prática ancestral que vem sustentando suas famílias há gerações. Entramos no mangue, sofremos ataques de muriçocas, tomamos banho de rio, comemos caranguejo, fizemos grandes amigos e hoje, sentimos saudades…

Remando em Preservação. Foto: Arquivo pessoal

O dia da saída de Barra Nova amanheceu diferente. O vento havia mudado para nordeste, mas com muita força varria o rio e o mar com uma intensidade que chegava a 30 nós. O tempo continuava chuvoso e fechado e minha sensação era que algo não estava legal. Saímos pelo rio e quando chegamos à boca da barra vimos grandes ondas rompendo e uma arrebentação que quebrava muito longe. Corajosamente remamos forte adentrando quando fui acometido por uma grande onda que me fez capotar.

Na turbulência da forte arrebentação, tive dificuldade em me livrar da saia que veda o cockpit e que nos prende ao caiaque. Ao chegar ofegante à superfície, pude ver meu parceiro Hamiltinho capotando também ao tomar uma grande onda na cabeça. Saímos ofegantes do mar que, com a maré cheia, tombava nossos caiaques com muita força na curta e inclinada bancada de areia. Na luta pra subir os caiaques perdemos uma bomba hidráulica, meu chapéu foi estraçalhado pelas ondas e só fui encontrar meu remo principal 400 metros ao sul, já que fora arrastado pela forte correnteza.

Na noite anterior minha mãe havia me ligado muito preocupada e tive um sonho poderoso onde via minha esposa Mariana grávida. Então senti que deveria desistir daquele dia. Ao conversar com Hamiltinho ele se manteve firme na ideia de tentar mais uma vez e juntos enfrentamos a maior arrebentação de ondas que encontramos até então.

Ainda fomos acometidos por três grandes ondas antes de chegarmos lá fora muito ofegantes e assustados. E seguimos remando por 30 km de praia deserta, água escura, ondas grandes e vento forte. Um clima tenebroso que se agigantou quando avistei um grande tubarão há 50 metros, vindo em velocidade em minha direção. Mesmo sabendo que esse é seu habitat natural e que não é padrão ataque a embarcações, confesso que fiquei muito assustado.

“Mesmo sabendo que ali era o habitat natural do tubarão e que não é padrão ataque a embarcações, confesso que fiquei muito assustado com a aproximação”. Foto: Arquivo pessoal

Já em Pontal do Ipiranga, fomos forçados a ficar mais três dias parados, pois chegara outra frente fria de sul. Passamos o Natal sozinhos e particularmente senti muito. Um misto de medo do que vivemos de Barra Nova até ali, do que enfrentaríamos até Regência, já que a tendência pra frente era de condições de ondas ainda mais difíceis. Senti saudade de casa, de Mariana, das minhas filhas Jade e Lua e da família.

O desafio aumentara muito diante do novo cenário imposto por um ano atípico em condições climáticas, que transformaram a primavera e o início do verão num dos piores invernos que já vi. Digo que nem no meu pior pesadelo passei pelas condições de natureza que estamos enfrentando.

Foi aí que nosso anfitrião Fábio nos sugeriu uma mudança na rota. Fomos de carro para Linhares e zarpamos pelo rio Doce por longos 43 km até Regência, nos livrando de mares perigosos e da temida foz do rio Doce. Chegar a Regência foi um grande alívio!

Ao caminharmos pela sua praia em direção à boca da barra presenciamos um nascimento de tartarugas com o auxílio do Projeto Tamar e sentimos o poder da natureza naquela região. Um lugar selvagem e poderoso que sobrevive e luta para se refazer após o desastre ambiental ocasionado pelo rompimento da Barragem de Mariana. De Regência remamos três dias passando por Barra do Riacho, Praia Grande e no sexagésimo dia da expedição entramos triunfantes na baía de Vitória após 1003 km percorridos.

Galeria de imagens

Não perca nada! Clique AQUI para receber notícias do universo dos esportes de água no seu WhatsApp

Hamilton Souza e Márcio Torres apresentam a quarta parte de seu diário de bordo da Expedição Remando em Preservação
Compartilhe