Remando em Preservação – Diário de Bordo I

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Márcio Torres e Hamílton Souza deram início à grande expedição a bordo de dois caiaques oceânicos de Salvador ao Rio de Janeiro. Foto: Arquivo pessoal.

Céu azul, mar liso, espelhado e cristalino, pequenas ondas balançavam o caiaque roxo de plástico que meu amigo Hamiltinho alugava em seu escritório na rua J de Itapuã. Com inseguras e principiantes remadas adentrava ao oceano em direção a “Pedra Que Ronca” um tanto quanto emocionado com o belo e novo cenário que essa nova modalidade me proporcionava. Falo nova pois cresci surfando, no mar possuo longa experiência, porém nas ondas quando fui atleta profissional e professor de Bodyboarding.

No caiaque era tudo diferente, estava muito além da zona de arrebentação a qual estava habituado, onde as cores do mar se tornam mais translúcidas, o silêncio canta o som da natureza e a introspecção é a voz da consciência.

Uma paixão que culminou no desejo de ir além, cada dia mais longe e distâncias outrora imensas se tornaram cada dia mais curtas. Assim nasceu o sonho de remar entre Salvador e o Rio de Janeiro, mas o caiaque roxo de Hamiltinho tinha limitações, era um equipamento de recreio e não fabricado para longas distâncias. Precisava de algo mais especializado e na internet descobri o caiaque oceânico, o cargueiro do remo.

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Design longo, perfilado, com aproximadamente cinco metros de comprimento, completamente oco e com compartimentos de proa e popa, além de um confortável cockpit onde pedais dão o rumo pelo controle de um leme. Um sonho! Com ele fui muito mais longe e realizei minha primeira expedição circunavegando a ilha de Itaparica em três dias.

Hamiltinho, que a esta altura já havia comprado a ideia de remar até o Rio, comprou seu caiaque, e juntos fomos em São Paulo fazer um curso avançado com Christian Fuchs, remador experiente, famoso professor e fabricante dos nossos caiaques. Foi uma decisão importante, pois adquirimos conhecimentos fundamentais sobre o caiaque oceânico, técnicas de remada, resgate, arrebentação de ondas com um cara que experiente em expedições.

Remando em Preservação – Diário de Bordo I. Foto: Arquivo pessoal

Quando retornamos de São Paulo mergulhamos de vez no sonho, precisávamos realizar expedições menores, aumentar quilometragem e com ela adquirir a experiência necessária para a realização da grande expedição ao Rio de Janeiro. Assim navegamos de Salvador ao Morro de São Paulo, fizemos a regata Aratu-Maragogipe ida e volta em meio aos veleiros, a volta completa na ilha de Tinharé e por fim, 450 km entre o Morro de São Paulo e Porto Seguro, sendo esta última realizada no mês de abril, época das frentes frias de sul repletas de fortes contraventos e ondas grandes.

Em 2015 estávamos prontos para a expedição ao Rio de Janeiro, mas foi necessário seis longos anos para tirar esse sonho do papel. Em abril deste ano o projeto estava finalizado e com data de partida marcada para o dia 01 de novembro de 2021, quando num treinamento senti fortes dores na lombar.

Através de exames de imagem foi detectada uma lesão crônica entre a L5 e a S1, uma espécie de artrose com formação de “bico de papagaio” e choques, muitos choques. Chorei e fui ao desespero por uma semana. Costumava remar por longas dez, onze, doze horas, percursos de quarenta, cinquenta e sessenta quilômetros, mas estava ali numa condição em que mal podia sentar numa cadeira, ou mesmo deitar numa cama sem sentir fortes choques que travavam meu corpo por inteiro.

Remando em Preservação – Diário de Bordo I. Foto: Arquivo pessoal

Como iria remar para o Rio se sequer conseguia sentar no caiaque? Pergunta que só agora posso responder, aqui em Ilhéus, após 14 dias de expedição e a caminho da realização do meu maior desafio. Explico: foram cinco meses de tratamento, fisioterapia, treinamento funcional personalizado, acupuntura e quiropraxia, passei a remar diariamente percursos curtos de cinco, depois dez, quinze e até vinte quilômetros e montei o roteiro da expedição ao Rio adaptado a essa nova realidade, distribuindo os aproximadamente mil e setecentos quilômetros que separam Salvador do Rio de Janeiro em oitenta dias com remadas diárias de vinte quilômetros. Acreditei realmente que seria assim, até que iniciamos a jornada e a natureza nos impôs desafios imensos.

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Zarpamos no dia primeiro de novembro da prainha da Capitania dos Portos na Baía de Todos os Santos, uma manhã emocionante com amigos, familiares, imprensa e autoridades da Marinha presentes, nem sei explicar direito o que senti, um mix de saudade prévia, angústia, insegurança em função da lesão na coluna que em nenhum momento deixou de sinalizar sua presença, enfim, o medo de não dar certo, de não conseguir e de após tanto nadar, “morrer na praia”.

Remando em Preservação – Diário de Bordo I. Foto: Arquivo pessoal

Após o choro seguimos adiante e remamos para a praia da Conceição na Ilha de Itaparica contra a forte maré de enchente na Baía de Todos os Santos. Foram 18,1 km no primeiro dia, com remadas fortes vencemos a corrente contrária, apesar de muitas dores no corpo inteiro e também na coluna, sobrevivemos.

Muito desconfiado e temeroso, iniciei o segundo dia quando remamos 23,17 km até Cachapregos na extremidade sul da ilha de Itaparica e a confiança aumentou. Na madrugada do terceiro dia acordei assustado com uma forte tempestade de raios e vento muito forte, fui pra internet e vi a previsão de uma longa semana de ventos fortes, ondas e raios. Tempestade de raios é algo que realmente não dá pra conciliar com a expedição. O mar é condutor de eletricidade e o risco de morte se torna iminente. Vi um garoto morto por raio na areia da praia de Piatã quando surfava em pleno verão e essa imagem nunca saiu da minha mente.

Seguimos para o terceiro dia ligados, tempo fechado, muita chuva e o alerta de raios tornou a remada de 25,29 km até a praia do Guaibim extremamente tensa. Se por um lado a confiança na minha coluna crescia, novos problemas surgiram, além dos raios.

Remando em Preservação – Diário de Bordo I. Foto: Arquivo pessoal

A previsão de uma longa frente fria com ondas grandes e forte contravento sul a partir do dia 13 de novembro nos impulsionou a quebrar o planejamento de remar apenas 20 a 25 km por dia. Precisávamos chegar em Ilhéus no dia 12, antes da frente fria, nos abrigado no alojamento da Marinha do Brasil até a tempestade de seis dias passar. No quarto dia passamos pelo Morro de São Paulo, no quinto por Garapuá e no sexto paramos por dois dias em Boipeba para recompor as energias e nos prepararmos para a sequência mais difícil da expedição até então. Boipeba é onde minha mãe reside e lá estava ela, amigos e minha esposa Mariana nos esperando.

Foi muito importante, nos fortaleceu e no dia 08 seguimos numa longa remada entre Boipeba e a Baía de Camamu com uma bela parada na Ponta dos Castelhanos em Boipeba, praia paradisíaca, momento muito especial.

Foram 44 km até a ilha do Contrato, onde realizamos nosso primeiro acampamento. Um desgaste enorme, remar, descarregar equipamentos, levantar camping, dormir mal, levantar de madrugada, organizar tudo nos caiaques e seguir adiante até Taipú de Fora na Península de Maraú. A essa altura vi que todo o trabalho feito com a equipe de saúde surtiu efeito, meu corpo estava preparado e a confiança aumentou muito.

Remando em Preservação – Diário de Bordo I. Foto: Arquivo pessoal

O décimo dia foi o mais pesado e assustador, quando remamos 40 km por toda a península de Maraú até Itacaré. Sob fortes ondas e um mar picado, muitas “toalhas d’agua” lavavam os caiaques a todo instante nos fazendo parar algumas vezes para retirar água de dentro dos caiaques com as bombas hidráulicas.

As fortes chuvas que aconteceram ao longo da semana causaram uma enchente no rio de Contas. Entramos na Boca da Barra de Itacaré exaustos e remando com muita força pra superar toda a energia da maré de vazante do rio. O dia seguinte manteve a tensão e alerta. As fortes ondas de leste batiam nos paredões de Itacaré e voltavam gerando forte turbulência e risco de capotagem.

Foram 25 km de costões rochosos, região selvagem e perigosa, remada silenciosa e forte até a praia de Serra Grande e mais 5 km até um oásis chamado Ponta do Ramo. Falo oásis pois após tantos desafios e tensões, chegamos numa comunidade amiga, de ondas pequenas e pudemos comemorar a passagem por um dos trechos mais perigosos da expedição.

Remando em Preservação – Diário de Bordo I. Foto: Arquivo pessoal

Se este mês de novembro seguisse a retórica tradicional, pré-verão, com ondas pequenas, tempo bom e mar verdinho, não teria sido tão difícil. Mas quisera Deus que nosso início fosse dolorido, difícil, com um mês de novembro característico dos mais difíceis meses do inverno. E chegou o tão sonhado dia 12 de novembro, quando remamos 29,97 km entre a Ponta do Ramo e Ilhéus, uma chegada triunfante por tudo o que vivemos. Fomos abordados por uma lancha e um jetski da Marinha do Brasil uns 4 km antes do Porto do Malhado e fomos recebidos com festa e uma bela feijoada organizada pelos oficiais da Marinha em razão da nossa chegada. Agora aguardamos o dia 18 para seguirmos viagem com ventos favoráveis e novos desafios que, com certeza, virão!

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