Quem foi Ka’iana, o personagem de Jason Momoa em “Chefe de Guerra”?

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Interpretado por Jason Momoa na série “Chefe de Guerra”, Ka’iana foi figura central no processo de unificação das ilhas do Havaí. Foto: Reprodução / Wikimedia/ Apple TV+

A série “Chefe de Guerra” (“Chief of War”), um dos grandes lançamentos recentes da Apple TV+, tem conquistado público e crítica por retratar com riqueza de detalhes a saga da colonização e unificação das ilhas do Havaí sob a ótica indígena. Criada por Thomas Pa’a Sibbett e Jason Momoa, a produção se destaca por sua impressionante recriação histórica, diálogos autênticos em língua havaiana, cenários exuberantes e um elenco afiado, tornando-se referência tanto pelo espetáculo visual quanto pelo respeito às tradições culturais locais. A atuação marcante de Jason Momoa, que confere carisma e profundidade ao protagonista Ka’iana – um chefe havaiano (Ali’i) de grande relevância histórica –, despertou enorme curiosidade sobre o que, afinal, é fiel à realidade e o que pertence ao universo da ficção nesse personagem fascinante. Se você também se faz essa pergunta, este artigo foi feito para você. Mas fica o aviso: o texto a seguir pode conter spoilers!

Ka’iana: Entre a Lenda e a História

Chefe de Guerra
Kaʻiana retratado em litografia feita por volta de 1787 durante sua viagem com o capitão britânico John Meares pelo oceano pacífico. Foto: Reprodução / Wikimedia

Ka’iana foi um dos líderes mais poderosos do Havaí em um período de transformações rápidas: o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, época em que as ilhas havaianas começaram a interagir com o mundo para além da Polinésia e passaram por um processo de unificação inédito. Segundo descrito por Samuel Mānaialani Kamakau (historiador nativo havaiano) e através de relatos registrados pelo navegador britânico John Meares em seus diários, Ka’iana foi muito além de um chefe guerreiro de seu tempo, mas um “Ali’i Nui” (alta nobreza havaiana), conhecido por suas habilidades excepcionais não apenas no combate, mas também na diplomacia e na articulação cultural, descendente de uma linhagem ilustre: era neto de Keawe, mōʻī (monarca) do Hawa’i (Ilha Grande do Havaí), e descendente das famílias reais de O’ahu e Maui. Isso o colocava entre as personalidades de mais alta patente numa sociedade rigidamente hierarquizada e fundamentada em genealogias e tradições religiosas. Estima-se que, em sua época, estivesse entre os vinte ou trinta indivíduos mais importantes do arquipélago, num universo de cerca de 800 mil habitantes.

Explorador e Estrategista Global

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Jason Momoa vive Ka’iana na série Chefe de Guerra da Apple TV+. Foto: Divulgação / Apple TV+

O olhar contemporâneo sobre Ka’iana, explorado “Chefe de Guerra”, acerta ao mostrar que ele foi protagonista de uma era em que os havaianos observavam, navegavam e dialogavam com o mundo, contrastando com a imagem colonialista de que os povos do Havaí viviam isolados ou alheios às grandes transformações globais. Contudo, como é de costume em romances baseados em fatos históricos, algumas liberdades artísticas são tomadas para tornar a trama mais envolvente. Diferentemente do que é mostrado na série, Ka’iana embarcou em sua jornada pelo Pacífico por decisão própria, motivado tanto por interesses políticos quanto pela curiosidade de explorar outros mundos que se abriam ao Havaí com a chegada de estrangeiros. Entre 1787 e 1788, ele passou mais de um ano e três meses viajando por diversas regiões — incluindo Macau, na China; Filipinas, ilhas de Palau, na Micronésia; e as costas do Alasca e do noroeste da América do Norte —, enfrentando tempestades, conhecendo diferentes culturas e ampliando seu entendimento sobre comércio, diplomacia e guerra. Todo esse aprendizado adquirido ao longo do percurso não só o marcou profundamente, como também reforçaria seu prestígio e influência ao retornar ao arquipélago havaiano.

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John Meares em retrato feito por volta 1790. Foto: Reprodução / Wikimedia

Durante o tempo em Macau, John Meares escreve que Kaʻiana aplicou toda a sua inteligência e atenção aos detalhes para descobrir de que país ou povo vinham todos ao seu redor. Ele vinha de um lugar onde todos eram havaianos e falavam havaiano. Talvez tivesse conhecido aguns ingleses dos navios de Cook ou dos cinco navios estrangeiros que ancoraram no Havaí após a passagem do capitão britânico, mas aquela ilha chinesa colonizada por portugueses era um lugar muito diferente.

Em Macau, Kaʻiana aprendeu que o mundo estava cheio de estrangeiros de diferentes lugares, que se entendiam diferentes uns dos outros, tinham costumes diferentes, falavam línguas diferentes, perseguiam seus próprios interesses.

Outra lição crucial desse processo foi o reconhecimento de que os havaianos estavam inseridos em um mundo dominado por impérios coloniais. Essa compreensão estratégica tornou-se fundamental para a organização política nativa nas décadas seguintes, permitindo que o Havaí se estruturasse como um Estado-nação soberano – um feito notável que garantiu o reconhecimento internacional e estabeleceu relações de igualdade com outras potências globais da época.  Quando os EUA ocuparam o Havaí em 1898, o desafio passou a ser como reconstruir a soberania efetiva do Havaí, um desafio que permanece no centro da vida dos nativos havaianos até hoje. Em, no entanto, 1788, esses eventos estavam a anos de distância, e Kaʻiana recebia uma primeira e importante lição sobre o que a nacionalidade poderia significar em um mundo de impérios.

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A “verdadeira” Wynee retratada em gravura feita por um membro da tripulação do Capitão John Meares durante suas viagens ao Pacífico que são reproduzidas na série. Wynee deixou o Havaí a bordo do navio britânico Imperial Eagle como criada da esposa do capitão Charles Barkley. Ela foi deixada em Cantão, onde decidiu retornar a sua terra natal a bordo do navio do Capitão John Meares juntamente com Ka’iana. Foto: Reprodução / Wikimedia

Durante sua intensa jornada pelo Pacífico, Ka’iana encontrou e compartilhou parte do caminho com dois outros nativos havaianos (kanakas): Ka Wahine (Winee) e Kāne, ambos tiveram destinos trágicos durante a viagem. Ka Wahine aparece no episódio 3 da série, e ainda não sabemos como Thomas Pa’a Sibbett e Jason Momoa desenvolverão a personagem. Embora não existam relatos históricos indicando que ela tenha influenciado diretamente o início do comércio de sândalo, especiaria rara e valiosa na época, como aponta a série, essa mercadoria inseriu o arquipélago havaiano nas rotas comerciais globais no início do século XIX. A demanda se tornaria tão grande que o sândalo havaiano chegou a ser chamado de “ouro branco do Pacífico”. “Wahine” em havaiano significa simplesmente “mulher”, e acredita-se que os ingleses usaram esse termo como se fosse um nome próprio, registrando-a como “Winee”. Ela também chegou até Macau vinda em outro navio britânico que passara pelo Havaí. Meares, então, comprometeu-se a levá-la de volta com sua tripulação, no entanto, sua saúde foi se agravando à medida que o grupo navegava pelo arquipélago das Filipinas. Ka’iana dedicou atenção e cuidado enquanto ela agonizava e, próximo à ilha de Panay, Ka Wahine morreu, sendo sepultada no mar. O pesar de Ka’iana ficou evidente, algo notável pois, como um ali’i nui, ele normalmente não conviveria de perto com uma makaʻāinana (pessoa do povo), mas longe de casa, a identidade havaiana tornou-se um elo mais forte do que qualquer distinção social.

Mais adiante, enfrentando doenças, falta de suprimentos e jornadas exaustivas a bordo, Kāne também não resistiu: faleceu enquanto o navio se dirigia de Tobi (hoje parte de Palau) rumo ao norte, sendo igualmente sepultado no mar em 23 de março. Ka’iana também adoeceu na viagem, mas conseguiu se recuperar de uma doença grave não especificada, mas possivelmente malária, pois foi tratada com casca de quina peruana, o chamado “Peruvian bark”, o melhor remédio usado contra a doença na época.

Quando retornou ao Havaí, trouxe experiências e objetos que reforçaram seu prestígio e poder no contexto havaiano. Os relatos sobre suas atitudes demonstraram que a hospitalidade, o espírito de generosidade e reciprocidade eram marcas fundamentais não só do chefe, mas de toda a sociedade havaiana. O excesso de presentes distribuídos aos nativos foi visto pelos estrangeiros como exagero, mas representava, na verdade, a expressão máxima dos laços de aloha e do prestígio de um líder.

Alianças e Rupturas: Relação com Kamehameha

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Retrato de Kamehameha I na velhice baseado na representação original de Louis Choris. Influência de Ka’iana foi fundamental para a unificação das ilhas, aliança com os britânicos e controle do Havaí, mas os dois grandes ali’is havainos acabariam por entrar em choque . Foto: Reprodução / Wikimedia

Ka’iana ganhou notoriedade como um dos mais influentes conselheiros e aliados de Kamehameha, figura central do processo de unificação das ilhas. Ambos reconheceram mutuamente seus talentos e utilidades: Kamehameha, com o apoio de Ka’iana e outros aliados, entre eles, os ingleses, consolidou-se como mōʻī das ilhas havaianas, enquanto Ka’iana, graças ao seu conhecimento do mundo exterior e à sua experiência, adquiriu terras, prestígio e proteção no círculo mais íntimo do governante.

Entretanto, como apontam os registros históricos (inclusive do rei David Kalākaua, sétimo monarca do Havaí unificado), a relação entre os dois não permaneceu inabalável. Apesar de anos de fidelidade e contribuições decisivas, Ka’iana trocou de lado na decisiva batalha pela ilha de O’ahu, aliando-se a Kalanikūpule, chefe rival. Morto em combate, seu corpo foi oferecido a Kūkāʻilimoku, o deus da guerra de Kamehameha, marcando um fim trágico e profundamente simbólico para uma das figuras mais complexas da história kanaka.

Motivações e Legado

O motivo da traição de Ka’iana é objeto de debate até hoje: há quem acredite que ele buscava para si o trono das ilhas, convencido de que sua linhagem era mais legítima do que a de Kamehameha. Outros falam simplesmente em desilusões políticas. E há que aposte em uma relação amorosa com Kaʻahumanu como o pivô da desavença entre os dois. O próprio Kalākaua sugere que Ka’iana sentia-se no direito de disputar o governo supremo do Havaí. Certeza mesmo, só a importância do seu legado para as gerações kanakas: um símbolo de liderança, coragem e capacidade de navegar entre mundos em rápida transformação.

Da História à Ficção

Em “Chefe de Guerra”, Jason Momoa tem sido bem-sucedido em dar vida a essa complexidade, incorporando um chefe guerreiro que transcende a caricatura do combatente: um explorador, diplomata, estrategista, corajoso diante dos mares e das batalhas, mas também profundamente envolvido nos dilemas de poder, identidade e destino de seu povo. O sucesso da série reside justamente em humanizar esse personagem e, ao mesmo tempo, lançar luz sobre a história dos povos do Pacífico, que sempre estiveram atentos ao mundo, disputando e defendendo o seu lugar nele.

Ao acompanhar a trajetória de Ka’iana revisitamos os caminhos de um povo que, ainda hoje, busca compreender e projetar o futuro de uma terra marcada pela ousadia e pelo espírito de exploração.

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